"Nos primeiros anos do século XXI, começou a terceira guerra mundial, os poucos sobreviventes sabiam que os homens não sobreviveriam a uma quarta, e que a nossa natureza volátil não poderia mais ser posta em risco. Então criamos um novo braço da lei, o Grammaton Cleric, cuja única tarefa é erradicar a verdadeira desumanidade do homem para com o homem: sua capacidade de sentir."
Num cenário futurista, pós III Guerra Mundial, os sobreviventes de Librium desenvolveram uma forma de impedir a barbárie: a supressão das emoções. Estamos falando do filme distópico Equilibirum, de 2002, do diretor Kurt Wimmer.
O diagnóstico é simples: o que leva à violência, ao caos generalizado, a completa desordem é a tal da espontaneidade humana. Esta tem a potencialidade de levar os indivíduos a agirem sempre subjetivamente, em contraposição à objetividade - em conformidade às regras sociais. Quando se fala aqui de emoções, fala-se também de liberdade e individualismo. Reprimir as emoções significa evitar a manifestação pública dos sentimentos. Uma sociedade ordeira, um paraíso terrestre, é o cenário no qual a racionalidade prepondera em toda a existência humana.
Em Librium, no ano de 2072, não se deve ter apego a filhos ou cônjuge. Não se deve ter apego a animais e nem mesmo ao próprio lar. Apego às coisas materiais? Nem pensar. E o exercício à arte? Esqueça! Qualquer estimulante a uma vazão sentimental é perigosa. Quem se aventura é suspeito. E este não pode contaminar as pessoas. Ele deve ser eliminado. Sem julgamento. Para que deixar vivo uma erva daninha? Para contaminar todo o jardim?
E o que eles utilizam para controle das emoções? Uma droga diária chamada prozium. E o estado totalitário monitora quem está efetivamente usando-a.
Á frente do Estado está um Conselho de clérigos chamado de Tetragrammaton. Acima dele temos o Pai, a autoridade suprema de Librium. Na prática, o Conselho é subordinado ao grande líder.
A estrutura militar, tecnológica, arquitetônica e jurídica é organizada por Tretagrammaton. São também responsáveis para que os cidadãos estejam sempre unidos, em ressonância com as orientações do Pai. As pessoas usam trajes bem parecidos, à exceção dos funcionários, como a polícia de elite ou os sacerdotes, que, em geral, vestem-se de pretos e portam as armas autorizadas.
Existe resistência armada? Sim, existe. Todos os contrapoderes são chamados de Sense Offenders (Infratores dos Sentidos). Eles vivem no submundo, disfarçados, buscando maneiras de derrotar o establishment, a nova ordem. Eles riem, escutam música, apreciam obras de arte, leem livros etc., desenvolvem suas subjetividades. Ou seja, acreditam que a essência da existência humana é a liberdade. São seres que desfrutam de uma vida autêntica. O debate entre individualismo e coletivismo é muito presente, de forma sutil, na obra. O primeiro sempre gera os maiores males da sociedade; e o segundo é considerado adequado a manutenção da ordem. Em Librium, portanto, a hiper racionalidade, operada numa espécie de imperativo categórico universal, é o melhor dos mundos.
Ainda neste universo estranho, o espaço privado quase que inexiste, pois o Estado pode invadir sua casa a qualquer momento. Sem autorização. E ele sabe quem está ou não usando a droga prozium. Na via pública é importante que todos ali estejam comprometidos em seguir a devoção diária ao Pai. Ele sempre aparece nos grandes projetores da cidade falando aos habitantes sobre a paz que foi construída duramente. Todos devem vigiar uns aos outros. Qualquer indício de alguém sentindo é denúncia certa.
Paro por aqui. Não quero dar spoilers. Mas dedicarei uns parágrafos para falar do cenário atual, da pandemia em Pindorama. Qual comparação podemos fazer aqui?
Quando se insiste na necessidade de obedecer aos decretos públicos e as orientações sanitárias, a fim de evitar contaminação e mortes por causa da Covid-19, é alertado às pessoas para que ajam conforme a razão. São questões objetivas, factuais. Temos uma pandemia, ela contamina facilmente e mata. E já matou aos montes. Ok! Tudo bem! Mas por que muita gente aglomera, se poderia evitar? Eis aí a nossa cabeça de medusa.
Tirando aquelas pessoas que são obrigadas a pegar transporte público cheio, o que em si é um problema crônico em Pindorama, o povo deveria obedecer ao Estado. Mas o que vemos é o contrário: indisciplina civil. Negação da ciência. Negação dos fatos. Inexistência de civismo e republicanismo. Ausência de cidadania. Fanatismo. E muito mais. Em resumo: falta de uma consciência objetiva. As pessoas, portanto, estão mais sincronizadas a subjetivismos diversos.
Recorrer a Equilibrium parece fazer sentido: as pessoas quando são dadas ao espontâneo, aos sentimentos e ausência de uma racionalidade clara, tendem a desobedecer às instâncias superiores, a ciência e ao Estado. Ou a desacreditar, inclusive, na mídia. O cidadão não age como cidadão, mas como um ser pré-político ou pré-social, pois, como ensinam as teorias da vida em sociedade, o circuito da pólis requer algum engajamento coletivo.
Dado à fragilidade gritante do contexto, as pessoas agem ao seu bel prazer, sendo juízes de si mesmas; desafiam a morte e negligenciam todas as consequências inevitáveis: lotação de leitos de UTI; gastos públicos; desemprego; aumento exponencial de vidas ceifadas e as sequelas físicas, sentimentais e psíquicas causadas pela Covid. Em resumo, quem não está nem aí contribui para a desordem pública. Isso é um fato objetivo. São pessoas alienadas, desprovidas de informação? Talvez alguns, mas parece muito pouco provável.
E pós-pandemia, a saída é reprimir todas as emoções, por que elas sempre levam à desobediência? Contrariamente ao filme, que é uma ficção científica, claro, não acredito que seja este o caminho. E nem a solução para o caos. O problema atual não é só uma questão de objetividade, indisciplina às instituições e suas regras de convivência que imprimem uma necessidade de diminuir a liberdade humana. Mas, também, e aqui acho que é uma questão fulcral, existe uma carência de compaixão, de sentimento coletivo, anterior a uma racionalidade social. O Espírito da época, Zeitgeist, é, ao meu ver, a indiferença quanto à condição humana, às dores e sentimentos alheios. Hannah Arendt colocaria isso como falta de reflexão, de julgamento; já eu coloco como uma questão de ausência de sentimento moral, que precede o exercício da razão socrática.
Assim, leitores, além do desprezo e desleixo com as instituições e seus conhecimentos técnicos e suas regras de manutenção da vida pública, os humanos, muitos deles, deixaram atrofiar o elo, a proximidade visceral, profunda, que nos liga mesmo antes de qualquer roupagem social. Mesmo antes de ser alguém filtrado pelas normas. Parafraseando Adam Smith, em Teoria dos Sentimentos Morais, a compaixão ou a piedade são sentimentos que temos ante à desgraça dos outros. É a solidariedade pelo sofrimento alheio. Ou o que o filósofo francês, Luc Ferry, chama de sacralização do humano: uma transcendência imanente baseada essencialmente no amor.
A desumanidade do homem, da mulher, não é sua capacidade de sentir, como evoca o filme, mas a sua incapacidade de sentir com o outro, sentir junto.
Até a próxima!
Link da imagem: https://cinemascope.com.br/colunas/in-dica/equilibrium/
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