No dia que descobri que um dos meus ex repetiu seu comportamento abusivo com uma namorada, vivi uma contradição: uma tristeza imensa e um enorme alívio.
Conversando na terapia, entendi que o alívio fazia sentido porque eu tinha saído daquele terrível lugar de culpa que me corroía a mente todos os dias. A voz dele ecoava na minha cabeça e, mesmo tendo mais equilíbrio emocional e autoestima, era muito difícil me livrar dela. Eu acreditava lá no fundo que eu era descontrolada demais e por isso era normal eu sofrer os abusos por parte dele. Saber que outra mulher, tão inteligente quanto eu, viveu a mesma coisa e tinha os meus sentimentos me despertou para a ideia de que ele tinha um padrão, especialmente discursivo, para fazer a mulher acreditar que, no final, ela era a culpada pela tortura mental e física que ele causava.
E como expliquei bem para a minha terapeuta, me livrar dessa culpa não significou tirar totalmente a dor que sentia. Na verdade, tive a impressão que apenas mudei de estação. Sai daquela estação de dor, baseada no autoflagelo sobre enxergar erroneamente minha personalidade e meu comportamento, e fui para uma nova estação, onde eu entendia que havia vivido em um ambiente manipulativo que me fez raivosa e me deixou fragilizada, e que agora outra mulher vivia a mesma situação - e não queria sair daquele lugar. Como isso não vai doer?
Trago esse exemplo porque acredito que ele ilustra bem a relação que as mulheres possuem com o feminismo e a saúde mental. É como uma faca de dois gumes, que corta a ficção do lugar da mulher, onde há papéis pré-estabelecidos e alimentados pela desigualdade de gênero, mas também faz com que se olhe o mundo com essa faca na mão. A cada passo, rasgam-se os véus e são expostas as mentiras escondidas por trás dos elogios, a violência presente nas entrelinhas, a raiva amortecida que pede passagem.
Lidar com uma visão feminista e com o “letramento de gênero”, ou a reeducação da percepção através do viés do gênero - de acordo com Valeska Zanello, significa abrir diversas caixinhas internas que estavam escondidas e bem embaladas pelas normas que ditaram verdades sobre o caminho da mulher. E muitas delas são inesperadas! É preciso uma situação, uma fala, um comportamento para que algum desponte e se perceba que há algo muito errado. Diante disso, parece até que no final, o que mais sobra é tristeza e pessimismo.
Acredito que faz parte do processo esse abatimento, essa incerteza se vale a pena continuar estudando, analisando e percebendo as nuances da desigualdade de gênero nos corpos femininos. Por que não permanecer na tal bênção da ignorância? Lembro de um ditado indiano que falava algo assim: “As pessoas mais felizes no mundo são os tolos e os sábios”. Para quem está nesse entremeio, tudo parece muito mais árduo e pesado, especialmente para a saúde mental.
Puxando esse debate, quero deixar claro que considero que o entendimento e conhecimento sobre a condição de opressão que uma mulher vive afeta bastante a qualidade de sua saúde mental. E, por isso, sugiro que haja acompanhamento terapêutico, sempre que possível, e uma abordagem carinhosa sobre si e os limites ao acessar certos lugares da luta feminista. O feminismo dentro de nós precisa de pausas e reajustes, nem que para isso seja necessário ler menos, saber menos, discutir menos. Quem já fez terapia entende a importância de assentar determinados acontecimentos (bons ou ruins), dando a eles a oportunidade de se ajustarem melhor - e no tempo certo.
Sendo assim, minha abordagem é validar as contradições que perpassam os caminhos de quem quer ir além das denominações e dominações sobre o gênero feminino. Ser mulher é difícil, ser mulher-mãe, mais ainda, ser mulher-mãe-preta muito mais, e muitos outros recortes podem piorar esse quadro. Se você é mulher e sente esse peso, seja paciente consigo mesma. Aproveite os impulsos que um novo conhecimento feminista sobre si lhe oferece, ao mesmo tempo, respeite sua reação emocional quanto às descobertas das novas/velhas opressões. E busque ajuda, amizades, tratamento, o que for preciso para que você continue inteira nesse processo de ser livre.
Um trecho de meu poema:
Minha metade precisava ouvir. A saudade era grande de ser inteira. Acordei em sonho e dei conta que não existia mais no passado. Hora de ir embora pela janela. Tenho asas. E ela?
Fonte da imagem: https://medium.com/qg-feminista/g%C3%AAnero-e-sa%C3%BAde-mental-das-mulheres-718f30fe02f5
Lindo poema! Olha,cada vez mais me deparo com mulheres que sofreram esse tipo de abuso,mas poucos homens tem noção do 1quanto podem prejudicar o psicólogo da sua companheira