FILMINHO DE SUPER-HERÓI E REMAKE SÃO SINAIS DE QUE O MUNDO ACABOU
- Miguel Pereira Filho
- 29 de jul.
- 6 min de leitura

Quem frequenta as salas de cinema nos últimos anos tem se deparado com uma onda incessante de filmes que são continuações, remakes ou mesmo live actions de obras de outras mídias. Para os que já se aproximam da casa dos “enta”, tais produções evocam lembranças de algum período marcante — seja da infância, seja da adolescência. Contudo, é possível que essa avalanche de nostalgia revele mais do que um apelo mercadológico: talvez se trate de um sintoma profundo da nossa cultura.
Se considerarmos que as produções que inundam as salas de cinema são, em sua maioria, norte-americanas, podemos especular as razões da abundância desse fenômeno. A cultura — enquanto lente privilegiada para se compreender uma sociedade — revela, nesse caso, o esgotamento criativo de uma indústria que, por quase um século, foi a vanguarda do soft power estadunidense. O império das imagens, que moldou subjetividades e projetou um ideal de futuro, hoje parece regredir ao conforto da repetição.
Esse culto ao passado, todavia, não é novidade. Ele ecoa, em outro registro e sob outras formas, a aparição desconcertante do Velho do Restelo, figura camoniana que irrompe em Os Lusíadas para pôr em xeque, com sua voz “pesada”, o entusiasmo imperial. Como argumenta Gládstone Chaves de Melo, esse personagem misterioso — cuja fala contradiz toda a euforia épica do poema — pode ser lido como uma projeção do próprio Camões, já desiludido, ciente das sombras que recobriam a expansão portuguesa. Sua denúncia da “vã cobiça” e da “glória de mandar” não é um mero lamento reacionário, mas a expressão trágica de um tempo em que o futuro se esgotara, restando apenas o luto pelo que se perdeu.
Em nosso tempo, a repetição incessante de narrativas do passado — sejam elas sagas de super-heróis, refilmagens nostálgicas ou franquias intermináveis — parece cumprir função análoga: advertir-nos, não mais sobre os perigos da ambição imperial, mas sobre o empobrecimento da imaginação política e cultural. Vivemos uma espécie de Restelo globalizado, em que a estética da repetição serve de compensação simbólica à perda de qualquer horizonte progressista. Assim como o Velho de Camões, nossa cultura atual parece falar “de saber só de experiências feito”, mas com um ressentimento que beira o niilismo. A nostalgia, portanto, já não é apenas saudade: é sintoma de um colapso temporal, de um presente que não consegue mais projetar-se para o porvir.
Hoje, com raras exceções, reina o vazio criativo. Mesmo filmes considerados “originais” frequentemente repetem fórmulas já consagradas. Um exemplo relativamente recente é Coringa (Joker, 2019), celebrado por muitos como uma obra disruptiva — exceto, é claro, por aqueles que assistiram ao icônico Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Até mesmo a Marvel, que remodelou o modo como consumimos cinema com seus blocos de narrativas interligadas, parece ter atingido um ponto de exaustão e recorre a si mesma: o anúncio do retorno de Robert Downey Jr. é mais um gesto de regressão nostálgica do que de invenção.
Contudo, esse cansaço não é exclusivo da indústria; ele reflete um esgotamento mais amplo. O cenário de incertezas — econômicas, ambientais e existenciais — torna tentadora a ideia de que, no passado, seríamos mais felizes. A tecnologia, ao mesmo tempo que transforma o cotidiano, devasta o estoque de empregos disponíveis. Conquistas como a casa própria ou a aposentadoria, que pareciam garantias para gerações anteriores, tornaram-se quase impensáveis. Segundo o Global Wealth Report 2024, são os millennials que enfrentam os maiores obstáculos para manter o padrão de vida da geração que os antecedeu.
Se o pessimismo atinge os mais jovens, a geração anterior reage com ressentimento às transformações que converteram seus ideais em promessas quebradas. A globalização, que reconfigurou a estrutura produtiva e dissolveu o chão de fábrica, também erodiu os padrões culturais estabelecidos. Eis a fórmula perfeita para o ressentimento — que, como bem sabemos, é matéria-prima da política contemporânea.
Nesse ponto, o plano dos afetos é decisivo. A chamada “cultura woke” — termo vago, usado a esmo — é frequentemente apresentada como símbolo de decadência. Casos como o live action de A Pequena Sereia (2022), com a atriz negra Halle Bailey, ou a escolha da personagem Rey como protagonista da sequência de Star Wars (O Despertar da Força, 2015), geraram reações furiosas. Em ambos os casos, a crítica foi dirigida não ao enredo, mas à escalação das atrizes. Chegou-se ao cúmulo de discutir a cor da pele de uma personagem que, afinal, é uma criatura mitológica — uma sereia.
Para os que se sentem deslocados, esse tipo de atualização estética é percebido como uma mácula: uma violação da memória afetiva, já fragilizada por um presente sem promessas. Alterar a infância é abalar o que resta de chão simbólico. E, quando o ressentimento migra para o campo político, seus efeitos se ampliam. O movimento Make America Great Again é disso um exemplo: ao mobilizar afetos feridos, construiu-se uma base sólida não apenas em torno de uma plataforma econômica, mas de uma promessa de restauração identitária. Como dissera James Carville em 1992: "É a economia, estúpido" — mas também é o afeto, o pertencimento, a nostalgia.
Nesse sentido, o movimento MAGA revela o esgotamento da imaginação política nos Estados Unidos: sua força deriva menos de uma visão de futuro e mais de um apelo a um passado idealizado. A nostalgia transforma-se, aqui, em dispositivo reacionário. Como observa Fredric Jameson (1991), o pós-modernismo cultural é aquele momento em que o passado é reproduzido de forma estilizada, fragmentada, desprovida de densidade temporal. Trata-se de um tempo que gira em falso, incapaz de abrir brechas para o porvir.
Ainda assim, seria um erro reduzir a nostalgia a uma fuga regressiva. Nesse ponto, a figura do Velho do Restelo se ilumina sob nova chave. Lido à luz de Michael Oakeshott (2000), ele encarna não a negação do mundo, mas o ceticismo diante de promessas redentoras. Seu saber “só de experiências feito” não é um anti-intelectualismo simplório, mas uma forma de prudência histórica, uma desconfiança ativa diante de narrativas totalizantes. Como o cético de Oakeshott, o Velho não propõe um mundo imóvel, mas resiste ao impulso de planejar o mundo como se fosse redimível.
A nostalgia, nessa chave interpretativa, pode ser menos uma fuga e mais uma forma de resistência epistêmica: recusar os futuros impostos pelo presente hegemônico pode significar, também, escavar, nos escombros da experiência histórica, alternativas não alinhadas ao progresso unívoco. Em vez de condená-lo como profeta do medo, talvez devêssemos escutá-lo como quem adverte contra as idolatrias modernas: a técnica como redenção, o consumo como pertencimento, o império como missão. Sua voz amarga ressoa como apelo à lucidez, como crítica imanente às ilusões do presente.
Talvez a maior armadilha da nostalgia contemporânea resida justamente em sua ambivalência: ela é, ao mesmo tempo, um refúgio e uma denúncia; uma estética da repetição e um sintoma de esgotamento. Mas, se a tratarmos apenas como fuga — ou como produto de uma sensibilidade decadente — corremos o risco de ignorar seu potencial mais profundo: o de funcionar como uma forma de crítica imanente ao presente, não pela recusa do novo, mas pela recusa daquilo que se impõe como o único novo possível.
Assim, talvez nos caiba escutar essa voz “pesada”, que ecoa tanto nas epopeias interrompidas quanto nos circuitos saturados da cultura pop. Seu “saber só de experiências feito”, longe de um empirismo estagnado, sugere uma outra modernidade: mais modesta, menos redentora, mas talvez mais habitável. Uma modernidade que reconhece os limites da razão planejadora, que não despreza o passado por arrogância progressista e que, por isso mesmo, se dispõe a reabrir o tempo — não como retorno, mas como reelaboração. A nostalgia, nessa chave, não é o oposto do futuro, mas sua condição trágica. E se não nos atentarmos enquanto sociedade, seremos o próximo cadáver adiado a procriar nostalgias.
Referências:
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Edição crítica e comentada por José Hermano Saraiva. Lisboa: Bertrand Editora, 2000.
CHAVES DE MELO, Gládstone. O Velho do Restelo ou o Poder da Palavra na Epopeia de Camões. Revista de Letras, Fortaleza, v. 23, n. 1, p. 113–132, jan./jun. 2001.
CREDIT SUISSE; UBS. Global Wealth Report 2024. Zurique: UBS Group AG, 2024.
JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1991.
OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. Tradução de Marcelo Consentino. São Paulo: É Realizações, 2000.
BRITANNICA. MAGA movement: analysis of origins, beliefs and impact. Encyclopaedia Britannica. Artigo atualizado em 15 jul. 2025. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/MAGA-movement . Acesso em: 29 jul. 2025. nypost.com+15britannica.com+15sites.uw.edu+15sites.uw.edu
THE NEW YORKER. The 2073 Assessment and Other Pessimistic Futures. Disponível em: https://www.newyorker.com. Acesso em: 15 jul. 2025.
VOX. How Pop Culture Turned Conservative in 2024. Disponível em: https://www.vox.com. Acesso em: 10 jul. 2025.
IMAGEM: PERFIL BRASIL. Comic-Con: como surgiu a maior convenção geek de cultura pop do mundo. Disponível em: https://brasil.perfil.com/entretenimento/comic-con-como-surgiu-a-maior-convencao-geek-de-cultura-pop-do-mundo.phtml. Acesso em: 29 jul. 2025.
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