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FRANCISCO, UM PAPA





A morte de Francisco (nascido Jorge Mario Bergoglio) não é apenas a despedida de um pontífice, mas a clausura simbólica de uma instituição que, pela primeira vez em séculos, ousou pensar diante do conservadorismo ortodoxo, ousou dialogar com os rejeitados, e, sobretudo, ousou errar publicamente. Morre o homem que trocou os tronos por albergues, o ouro por aço, os palácios por quartos simples, e que, em sua frágil e obstinada corporeidade, ofereceu o rosto nu de uma espiritualidade desencantada com os próprios altares, sendo uma contradição viva: combateu os abusos, mas hesitou diante do poder eclesial; acolheu os que amam sem seguir o modelo tradicional. Foi o Papa da misericórdia que exortou padres a se comportarem como aqueles com cheiro de ovelha, sem jamais postura de lobo. Ele se comportou como jesuíta disciplinado, tendo sussurrado e por vezes gritado em tons mais humanos.


Argentino de sangue e de alma, torcedor fervoroso do San Lorenzo de Almagro, jamais negou suas raízes, mesmo que zombasse de si com ironia: “Deus é brasileiro”, dizia ele entre sorrisos, mas foi um argentino quem sentou-se no trono de Pedro para lembrar que o Espírito sopra onde quer, inclusive nas arquibancadas sul-americanas, entre pastéis e futebol, entre tango e rosários.


O que o torna inusitado e digno de ser lido à luz de uma hermenêutica cristã é que ele jamais quis ser extraordinário. Francisco operou uma teologia da normalidade: lavou pés de doentes de AIDS, não como gesto performático, mas como sacramento do ordinário. Não se travestiu de santo; pelo contrário, declarou-se "grande pecador" ao aceitar o papado. E talvez aí esteja seu maior milagre: ter mantido a fé em Deus, mesmo cercado de cúrias que conspiravam contra ele, mesmo sentado num trono que tentou transformar em banco de praça.

Um gesto seu radical talvez tenha sido o mais silencioso: a oração solitária na Praça de São Pedro, vazia e molhada de chuva, em março de 2020, no auge da pandemia de COVID-19. Ali, com os olhos voltados para o crucifixo, sob a escuridão que pesava sobre o mundo, ele representou não a majestade, mas a vulnerabilidade. Estava só, tal como Jesus no Getsêmani, frágil, orando pela humanidade mergulhada no medo e na morte.


Sua crítica ao capitalismo selvagem, sua denúncia à “cultura do descarte” e sua recusa ao tradicionalismo litúrgico o posicionaram como um Papa sobrevivente do tempo, que ousou ser futuro num mundo de passado. Francisco se fez herege aos olhos dos fanáticos e revolucionário para os olhos progressistas. Sua morte não fecha um ciclo. Abre uma ferida. É preciso continuar a liturgia do inacabado, esse evangelho sem conclusões, pois Francisco não canonizou a dúvida, mas a acolheu como um sacramento possível. Ou seja, ele não tratou a dúvida como inimiga da fé, mas como parte do caminho da fé. Ele reconheceu que o ser humano crente pode, e muitas vezes deve, atravessar o deserto da incerteza, conviver com perguntas sem respostas imediatas, e dialogar com o mistério, sem ser por isso excluído ou condenado.


Morre Francisco, e com ele fica o eco de suas palavras, ditas entre guerras e pandemias, entre escândalos e silêncios: "Quem sou eu para julgar?". Que outro papa será capaz de fazer da humildade um ato de existência? Que outra figura carregará nas costas a cruz recusando-se a subir ao Gólgota da autoglorificação?


Francisco não será lembrado apenas como o primeiro Papa latino-americano, ou o primeiro jesuíta no trono de Pedro. Será lembrado como aquele que, ao invés de reinar, tentou, com todas as limitações de um homem: servir. Um Papa que nos fez pensar sobre ser possível uma Igreja sem palácios, uma fé sem cruzadas e uma espiritualidade sem exclusão. Continue sua travessia Francisco, ela tem sido incrível. Um xêro nesse seu grande coração!


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7 Comments

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Bruna José Borges do Amaral
há 5 horas
Rated 5 out of 5 stars.

É inegável que o Papa Francisco rompeu muitas barreiras, em diversos momentos fez o mundo refletir sobre a sua imagem, um senhor que tinha nome e poder, mas se colocava em uma posição de humildade diante daqueles que eram considerados pequenos. Durante os seus anos como papa ele não foi omisso sobre questões que levaram muitos ao afastamento da igreja, ao contrário, chamou novamente aqueles que deixaram o seio da comunidade religiosa, admitiu o erro cometido. Ele não foi apenas um bom líder religioso, foi um humano que demonstrou a todo momento a sua essência ao tentar ser o mais parecido com Deus.

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Beatriz Silverio
Beatriz Silverio
há 8 horas
Rated 5 out of 5 stars.

O papa Francisco nos mostrou o que de fato rege o cristianismo, não julgar e condenar as pessoas, ser empático, solidario e amoroso sem distinções de raça, classe social ou sexualidade sua perda nos fazendo refletir no quanto o mundo seria melhor se todas as pessoas tivessem essa sensibilidade e visão humanitária, ele foi acima de tudo muito humano, mostrando que erramos mas podemos ser um pouco melhor a cada dia.

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Evelly Zeferino
Evelly Zeferino
há 9 horas
Rated 5 out of 5 stars.

O papa Francisco foi de fato um grande papa, em meio a um mundo de interesses, ele foi acima de tudo humano, um homem de verdadeira fé, ele não almejava riquezas e sim servir a Deus com sinceridade, acolhendo e ouvindo aqueles que precisavam, espalhando o amor e a fé, que são coisas que tem faltado no coração das pessoas atualmente, em meio a uma realidade tão violenta e desigual.

Infelizmente sua partida foi uma grande perda para a sociedade, mas esperamos que sua trajetória jamais seja esquecida e que sirva de exemplo para o Papa atual e os futuros que virão.


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Cremilce Santana
há 6 dias
Rated 5 out of 5 stars.

Os valores fazem parte da estrutura humana muitas das vezes é difícil vermos pessoas engajadas, dispostas a enfrentar com amor, as discussões que exigem força e intervenção muitas das vezes sobrenatural. Em meio a tantos que duvidam do sobrenatural de Deus, Ele ainda é a referência maior em amor, em justiça. Isso não podemos esquecer e nem dúvidar. Mais que Ele também através de nós faz resurgi esse amor pelo proximo. E assim como o papa ainda continua sua travessia " continue sua travessia".Todos nós iremos repousar um dia ,em um lugar.

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Carlos André dos Santos
Apr 22
Rated 5 out of 5 stars.

Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, nos ensinou grandes lições: o desapego, o amor aos mais necessitados, a coragem de tentar promover reformas em espaços que guardam em sua existência o conservadorismo. Francisco abriu portas para que mulheres e outros coletivos historicamente discriminados sejam reconhecidos como sujeitos dignos de direitos, sobretudo o direito de professar a fé.

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