LEI DE EXECUÇÕES PENAIS, 41 ANOS: entre a promessa da dignidade e a realidade do esquecimento
- Nieissa Pereira
- 11 de jun.
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No dia 11 de junho de 1984, a exatos 41 anos, no Brasil nascia a Lei de Execução Penal (LEP), Lei nº 7.210 e trazia, como marco regulatório, a racionalidade, a legalidade e a humanidade na forma como o Estado deveria administrar o cumprimento das penas. A LEP surgia como um símbolo de progresso em tempos de transição democrática no cenário político e social do país, afirmando no papel um novo paradigma: o de que a pena não deveria ser sinônimo de suplício, mas instrumento de ressocialização.
No entanto, em 2025, 41 anos após sua promulgação, a LEP segue sendo mais promessa do que prática. A distância entre o que diz o texto legal e o que acontece no cotidiano das prisões brasileiras é brutal — e, para determinados corpos, essa distância é praticamente intransponível. Não basta, portanto, apenas reconhecer e dar os parabéns pelo aniversário da LEP. É preciso se questionar: quem a LEP protegeu nesses 41 anos? E mais: quem ela sistematicamente excluiu?
Essa pergunta se torna ainda mais latente quando observamos a realidade das pessoas trans e travestis privadas de liberdade, cujas existências seguem sendo ignoradas, marginalizadas e violentadas por um sistema penal que se sustenta no binarismo de gênero e na cisnormatividade institucionalizada.
A LEP é, até hoje, silenciosa em relação à identidade de gênero, adotando uma lógica jurídica que opera exclusivamente sob os marcos da distinção biológica entre “homens” e “mulheres”, como explicitado nos artigos 89 e 90. Não há, ao longo de seus 204 artigos, qualquer menção à diversidade sexual ou ao reconhecimento da identidade de gênero como elemento relevante no cenário carcerário.
Em artigo publicado na Revista Ratio Juris (2024), intitulado “Transfobia e Heteronormativismo em uma Política Carcerária ‘à Brasileira’”, analisei, como o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive a LEP, perpetua o preconceito contra a diversidade sexual, ao ignorar a identidade de gênero como fator estruturante da experiência prisional. No estudo, propus uma revisão legislativa da própria LEP, com base na Teoria do Garantismo Penal do professor e jurista Luigi Ferrajoli, para que ela contemple expressamente a proteção das pessoas trans, garantindo-lhes, ao menos, a liberdade de autodeterminação de gênero no contexto da execução penal.
A Teoria do Garantismo nos ensina que a aplicação da pena deve ser limitada por garantias constitucionais, direitos fundamentais e pela dignidade da pessoa humana. Isso significa, na prática, que nenhuma pena pode violar a essência da identidade do sujeito apenado. O cárcere, como espaço de limitação de liberdade, não pode ser espaço de negação da humanidade.
Muito se celebrou a Resolução Conjunta nº 1/2014 e a Resolução nº 348/2020, que estabeleceram diretrizes para o acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+ no cárcere. Porém, como foi apontado no artigo, essas normativas possuem caráter infralegal, têm baixa efetividade e muitas vezes são ignoradas pelas administrações penitenciárias, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Dados do próprio Ministério dos Direitos Humanos (2020) apontam que, dos 1.449 estabelecimentos penais brasileiros, apenas 106 possuem alas específicas para pessoas LGBTQIAPN+, e a transferência para presídios compatíveis com a identidade de gênero ainda depende de decisões judiciais excepcionais.
Na prática, portanto, essas resoluções não substituem a urgência de uma reforma legislativa na LEP, incluindo dispositivos que:
· reconheçam expressamente a identidade de gênero como critério de classificação carcerária;
· garantam o direito à autodeterminação de gênero sem necessidade de cirurgia;
· assegurem alas seguras para pessoas trans e travestis com base na vontade expressa da pessoa presa;
· impeçam sanções disciplinares ou restrições com base na identidade ou expressão de gênero.
Outro ponto central da análise é a constatação de que a transfobia presente nas prisões é um reflexo direto da transfobia da sociedade brasileira. O preconceito não nasce no cárcere — ele apenas encontra ali um ambiente fértil para se manifestar, em razão da ausência de controle social, da lógica de punição e da cultura institucional punitivista.
Conforme aponta a ANTRA (2023), mais de 90% das pessoas trans têm na prostituição sua principal fonte de renda, consequência direta da exclusão escolar, familiar e do mercado formal de trabalho. Esse contexto de exclusão força muitas à informalidade ou à ilegalidade, aumentando a vulnerabilidade à seletividade penal. Uma vez presas, essas pessoas enfrentam o que chamamos no artigo de “dupla exclusão”: por serem apenadas e por serem trans.
Celebrar os 41 anos da Lei de Execução Penal não pode ser um ato de nostalgia jurídica, mas um chamado à responsabilidade política. O aniversário da LEP deve nos forçar a olhar para o espelho da realidade prisional brasileira e reconhecer que a lei não alcança todos. Que algumas vidas continuam sendo descartáveis dentro das celas, porque nem mesmo são reconhecidas como sujeitos de direitos.
Como escrevemos no artigo, a política carcerária brasileira adota, ainda hoje, a lógica da heteronormatividade como critério organizativo do sistema prisional. Isso significa que qualquer corpo que desafie esse padrão é violentado, invisibilizado ou corrigido à força.
É hora de parar de legislar como se todas as pessoas fossem iguais. Porque não são. E a dignidade da pessoa humana só se concretiza quando o Estado reconhece as diferenças e atua para corrigi-las, e não para anulá-las.
Que o marco dos 41 anos da LEP não seja apenas mais um número. Que seja, sim, um lembrete incômodo de que a justiça penal brasileira ainda deve muito aos corpos dissidentes. E que, enquanto isso não mudar, não há o que se comemorar.
REFERÊNCIAS:
ABRAJI. Livro-reportagem aborda experiências de pessoas trans no mercado de trabalho formal. São Paulo: Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, 2024. Disponível em: https://www.abraji.org.br/noticias/livro-reportagem-aborda-experiencias-de-pessoas-trans-no-mercado-de-trabalho-formal. Acesso em: 10 jun. 2025.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 10 jun. 2025.
PEREIRA, Nieissa dos Santos; MORAES TERCEIRO, Bacildes Azevedo. Transfobia e heteronormativismo em uma política carcerária “à brasileira”. Revista Ratio Juris, Medellín, v. 19, n. 38, p. 491-520, 2024. DOI: 10.24142/raju.v19n38a13.
IMAGEM: Justa Pena
A existência de uma lei não garante a implementação.
É desesperador perceber o quanto precisa ser revisto e verdadeiramente aplicado na LEP!!