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METANOL, MERCADO E MORTE: Quando o Lucro Embriaga a Consciência


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A mais recente notícia que tem circulado na tv, em sites jornalísticos e mídias sociais no Brasil, tem revelado uma tragédia silenciosa que expõem o lado mais cruel do capitalismo contemporâneo. A adulteração de bebidas alcoólicas com metanol, substância letal usada para aumentar o rendimento de bebidas falsificadas e reduzir custos de produção, tem chocado e amedrontado a população. Por trás das garrafas baratas e das promessas de diversão, esconde-se uma lógica fria e impessoal que transforma a morte em efeito colateral de uma equação econômica. Esse fenômeno, analisado sob a ótica da criminologia econômica, ultrapassa o campo jurídico e penetra nas entranhas éticas da sociedade brasileira, revelando como a sede por lucro pode embriagar a consciência coletiva.


A criminologia ensina que o crime não é apenas o resultado de uma transgressão individual, mas o reflexo de uma estrutura social. O texto Aspectos Criminológicos do Crime Econômico mostra que há uma distância significativa entre o crime convencional, cometido por sujeitos marginalizados, e o crime econômico, perpetrado por agentes socialmente integrados e amparados por uma aparência de respeitabilidade. O delinquente econômico é o “criminoso invisível”: ocupa cargos de poder, assina contratos, paga impostos e, ainda assim, destrói vidas. Quando decide introduzir metanol em bebidas, age com racionalidade empresarial calculando custos, estimando lucros e ponderando riscos. Nessa racionalidade, a vida humana é reduzida à estatística e o crime se torna um negócio lucrativo.


A sociedade, em grande parte, convive com essa criminalidade sem perceber. A publicidade, o consumo e a desigualdade funcionam como anestésicos morais. Enquanto as vítimas são, em geral, trabalhadores das periferias, os responsáveis diretos raramente enfrentam as mesmas condições do sistema penal que recaem sobre os marginalizados. O Direito Penal tradicional é severo com o pequeno infrator, mas complacente com o criminoso de colarinho branco. A adulteração por metanol, nesse sentido, é mais do que um crime: é o retrato de uma hierarquia social em que a vida vale menos do que o lucro.


O metanol, portanto, é apenas o meio químico de um envenenamento moral mais profundo. Ele simboliza a degradação de valores essenciais, como a solidariedade e o respeito à vida. Cada garrafa adulterada representa não apenas um risco físico, mas também o colapso ético de um sistema que privilegia o ganho sobre o bem comum. A criminologia econômica, ao denunciar essa lógica, propõe que o enfrentamento da criminalidade deve ir além da punição: deve atingir a cultura que a sustenta. É preciso desnaturalizar a ideia de que “os negócios são os negócios”, como se o lucro justificasse qualquer meio, inclusive o assassinato disfarçado de transação comercial.


O Direito, evidentemente, tem papel essencial nesse processo. A Constituição Federal de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro. O artigo 5º garante o direito à vida e à segurança, valores que são diretamente violados pela adulteração de bebidas. A Lei nº 8.137/1990, ao punir os crimes contra as relações de consumo, e o artigo 272 do Código Penal, ao criminalizar a adulteração de substâncias alimentícias, são tentativas do ordenamento jurídico de responder à perversidade do mercado ilícito. Contudo, a mera existência de leis não é suficiente quando a cultura social relativiza a gravidade do crime econômico. O problema, portanto, não é apenas jurídico, mas moral.


A tragédia do metanol nos obriga a refletir sobre o tipo de sociedade que estamos construindo. A indiferença diante do sofrimento alheio, a negligência das autoridades e o silêncio da mídia diante da morte de pessoas pobres revelam o que a criminologia chama de “seletividade moral”. Há crimes que indignam, e há crimes que se dissolvem no esquecimento. A morte por metanol não gera comoção nacional, porque suas vítimas não têm voz, não têm sobrenome famoso, não ocupam os espaços de poder. É nesse silêncio que a impunidade floresce e a criminalidade econômica se perpetua.


A resposta a essa realidade deve ser mais ampla do que o castigo. É preciso resgatar o sentido ético da vida em sociedade. O combate à adulteração de bebidas não se resume à atuação da polícia ou à aplicação de penas severas, mas à reconstrução de uma consciência coletiva que reconheça o valor intrínseco da dignidade humana. A criminologia, quando compreendida em sua dimensão humanista, nos ensina que punir é necessário, mas compreender é essencial. E compreender significa olhar para o crime econômico não como exceção, mas como produto de um sistema que privilegia a acumulação em detrimento da vida.


O metanol é o espelho em que se reflete o veneno de uma sociedade que perdeu a medida entre o lucro e a ética. Enquanto não compreendermos que cada gota de bebida adulterada carrega a banalização da morte, continuaremos embriagados pela indiferença. É preciso despertar, reverter o processo de anestesia social e lembrar que a economia deve servir à vida — e não o contrário.



REFERÊNCIAS:

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.


BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.


BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.


LAMOUNIER, Gabriela Maciel; NASCIMENTO, João do. Entendendo os princípios penais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2021.


SILVA, Rafael Bittencourt (Org.). Aspectos criminológicos do crime econômico. Salvador: Oráculo Jurídico, 2024.


SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1949.


ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 8. ed. São Paulo: RT, 2022.


IMAGHEM: Portal Dia Online

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