top of page

MINHAS BABÁS E LUGAR NÃO HUMANO DAS CUIDADORAS NO BRASIL


Como toda criança, precisei de mais de um adulto, além de mainha, para ser cuidada. Com um pai ausente, quem assumiu esse papel, principalmente, foram duas empregadas domésticas: Nalva e Dora.


A Nalva me acompanhou na primeira infância. Mainha disse que ela tinha dezesseis anos quando começou a trabalhar lá em casa. Para mim, ela era tão adulta quanto mainha. Não via feições de meninice no seu rosto e ela dava conta da casa tal qual mainha fazia. Cozinhava, limpava, arrumava. Em poucos momentos, se entretia comigo e meus irmãos no meio das nossas brincadeiras, como aquela vez em que ela mascava chicletes e me ensinou como usar a língua para fazer uma bola. Nalva ria, faceira, quando eu não acertava e, nesse dia, senti uma afeição por aquela figura que mal conhecia, mesmo ela perambulando quase todos os dias na minha casa.


Nalva falava pouco e, na presença de mainha, se mostrava muito mais séria, prestando atenção nos seus comandos para as demandas domésticas. Mas, não se esqueça que estamos falando de uma menina, certo? Foi esse lugar dela que a fez ser dispensada. Depois de alguns anos de dedicação a crianças que não eram suas, Nalva se apaixonou por um rapaz. Bonitão e mais velho, ele passou a visitá-la em algumas tardes, dentro de nossa casa, com todas as crianças presentes. Lembro da camisa e calça sociais dele, suadas pelo calor da cidade. O moço aparecia por um menos de um hora e sumia. Nalva se valeu da nossa confiança e pediu que nada fosse comentado com mainha. Até que um dia o homem pediu que ficássemos no quarto. Ele ligou o rádio e chamou Nalva para dançar. Eu e meu irmãos espiamos tudo pelo corredor. O braço dele em volta de sua cintura, o beijo quente e a entrega do corpo de Nalva a esse homem.


Dessa vez, contamos a mainha. Nalva sumiu. Mal tinha me conectado e ela não estaria mais ali. Tempo depois apareceu a Dora. Quando ela chegou, eu era um pouco maior e a conexão com ela foi ainda mais difícil. Talvez porque não era uma menina como Nalva. De fato, Dora já tinha um filho da idade da minha irmã e acho que ela não recebia um salário. Ela parecia estar em alguma situação complicada e cumpria as ordens de mainha, recebendo comida e um teto. O apartamento já era miúdo para a nossa família. Mais dois membros complicava ainda mais. Eles se apertavam em um canto da sala.


Com o passar dos anos, o filho dela ficou na casa de parentes e Dora, de tempos em tempos, aparecia lá em casa. Uma noite acordei para beber água e a vi dormindo nas cadeiras. Três cadeiras de madeira pequenas e quebradas. Ela ajeitava seu corpo magro naquele espaço e tentava dormir. Na verdade, Dora nem comia conosco. Todos à mesa e ela sentada em um canto da sala com seu prato de comida. Sua roupa se resumia a duas mudas que ele revezava durante a semana. Eu percebia tudo isso e nem cogitava comentar com mainha. Me sentia estranha com essa mulher que parecia meio perdida e estava ali para cuidar de mim, meus irmãos e da casa. Diferente de Nalva, Dora não expressava sorrisos ou graças.


Nalva e Dora foram as babás mais marcantes, mas houveram muitas outras, todas mulheres pobres. Eram também corpos pretos, sujeitos a inseguranças sociais de alimentação, moradia, saúde, educação e muito mais. As idades variavam muito. Das adolescentes como Nalva a idosas de mais sessenta anos, como a Leonor. Muitas vinham do interior e estavam buscando emprego na cidade grande. É importante deixar claro também que eram indicação de tias, amigas e vizinhas. Outro ponto é que nem todas passaram por nossas vidas como boas cuidadoras. Eu e meus irmãos tivemos babás violentas e com problemas mentais graves, ao ponto de uma delas tentar nos “vender” pelo bairro. O ponto comum era sempre uma fragilidade das condições de vida e a ocupação não demandar profissionalismo ou cursos. Consegue olhar crianças e deixar a casa limpa? Servia para o cargo.


Acho que na minha descrição deu para perceber que, apesar dessas mulheres conviverem bastante comigo e meus irmãos, não havia uma grande conexão com elas. Quem dera que o motivo para isso fosse a questão do profissionalismo da sua função. Elas pairavam na nossa rotina, mas não estavam inteiramente nela. Não almoçávamos juntos. Elas serviam nosso almoço, limpavam tudo e depois disso, na sombra da cozinha miúda, comiam seu prato, já frio. Ao menos lembro que elas comiam o mesmo alimento que nós, mas, parecia que existia uma regra “no ar” de que não era certo sentar à mesa conosco. A gente não sabia a data de seu aniversário, informações sobre sua família, ou em qual casa moravam. Por mais que a dita informalidade quisesse ditar que ela não era uma mera empregada, pelas conversas bobas e divertidas entre elas e mainha, nada fazia elas serem vistas como alguém da nossa afeição.


Essa é a dinâmica cultural brasileira na relação entre cuidadoras e suas contratantes. Fruto de um cenário elitista e escravista, a empregada possui aquele lugar ambíguo de ser uma quase profissional e quase da família. Nessa perspectiva, se essa mulher for tratada completamente como empregada, terá que ser vista como profissional, com limites, direitos e deveres, como qualquer um que lidamos. Se ela for tratada como família, deverá receber os mesmo bônus que todos os membros familiares, da estadia de mesma qualidade ao mesmo alimento, atenção e cuidado e (quem sabe?) herança. Quando se é meio família/meio profissional, a intimidade convoca a passividade quando se pede para que fique “só mais um pouquinho” ou que aguente firme que “logo será paga” mas, “por favor, não esqueça de limpar atrás do sofá porque está cheio de resto de lanche das crianças”.


Por essa descrição, percebe-se que as cuidadoras não teriam um lugar de autonomia sobre a prática de sua atividade. Mais do que o pagante dos seus serviços, o patrão é o mandante dos caminhos dessa relação, uma herança fatídica da exploração das sujeitas negras ao longo da história do país.


“Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2019, mais de 6 milhões de brasileiros e brasileiras dedicam-se a serviços domésticos. Desse total, 92% são mulheres. Essas mulheres em sua maioria são negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.”

Fadada a condições de trabalho degradantes, a cuidadora do lar é vista abaixo da condição humana, praticamente um objeto de pertencimento da casa e dos “donos da casa”. Tanto que é muito comum nas pesquisas de opinião, ao ser feito o corte socioeconômico, o respondente assinalar uma lista de aparelhos domésticos, cômodos da casa e tecnologias diversas. E adivinha o que está nesta lista? “Número de empregadas domésticas”. Sim! A profissional é colocada no mesmo patamar que aparelhos, objetos e parafernálias.


O absurdo dessa condição fica clara quando a conquista de direitos dessa categoria só foram estabelecidos há apenas dez anos atrás, em abril de 2013, com a PEC das Domésticas, resultado de várias mobilizações sociais. Com ela, a empregada doméstica poderia ter direitos trabalhistas básicos, como descanso semanal remunerado, férias, salário mínimo, FGTS e outros mais. Porém, isso não significou que mudanças alcançaram os lares brasileiros, dado que ainda é alarmante o número de profissionais domésticas encontradas em situações semelhantes a escravidão, com um aumento de 1.350% nos últimos cinco anos, segundo o Ministério do Trabalho e Previdência.


E por que esse tipo de situação persiste? A presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista Pereira responde:


“A discriminação relativa ao trabalho doméstico nasce, pois, de sua representação ligada à condição escrava e, consequentemente, à sua desvalorização social. No período escravista, a assimilação da posição social à identidade racial indicava certa equivalência entre a cor e o exercício de certas atividades, ou seja, ser escravo significava ser negro e as atividades realizadas pelos negros, na maioria das vezes, eram atividades desprestigiadas”

Enfim, acho que a minha história com minhas babás e cuidadoras da casa podem te fazer revisitar muitas cenas que você já observou ou viveu. Por serem situações tão amarradas às nossas vivências de amor e afeição familiar, talvez seja difícil encarar o nível de exploração que essas pessoas viviam (e vivem) e como é preciso mudanças radicais dessa condição. Estude sobre o tema, pague adequadamente a profissional que estiver na sua casa e tente fazer parte da mudança dessa história.


FONTE:








46 visualizações1 comentário

1 Comment

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
carlosobsbahia
carlosobsbahia
Aug 10, 2023

Grande texto,Karla! Muitos se identificaram com uma profissional dessas que carregavam mágoas e vidas difíceis.

Like
bottom of page