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NO NAUFRÁGIO DA PEC DA BLINDAGEM E DA ANISTIA, NUNCA PRECISAMOS TANTO DE NOSSOS ESTIVADORES


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Prezado leitor, antes de mais nada, gostaria de dedicar humildemente este texto à Socióloga e professora aposentada da Universidade Federal da Bahia Maria David de Azevedo Brandão, que nos deixou no último domingo (21). Embora o tempo não tenha sido seu discípulo direto, a professora Brandão poderá, não só pela sua obra, mas também pelos frutos deixados na academia e fora dela, ser referência de rigor acadêmico e o compromisso intelectual com os destinos do nosso país. Gratidão pelo legado que chegou até mim, professora. Sigamos.


As manifestações contrárias à chamada PEC da Blindagem e da anistia, que ocuparam as ruas de grandes metrópoles no último domingo, revelam a vitalidade da sociedade civil brasileira. Ao rechaçar tentativas de autoproteção de parlamentares e de absolvição de golpistas, a opinião pública deixou claro que não compactua com mecanismos de impunidade — postura que reflete a disposição de uma sociedade moderna que, desde as Jornadas de 2013, anseia por uma repactuação com o poder político.


Essa reação não se limitou a críticas difusas: mobilizou entidades da sociedade civil organizada, movimentos sociais, intelectuais, artistas e políticos, além de setores da imprensa que amplificaram o descontentamento popular. Considerando tanto os que rejeitam qualquer anistia quanto os que a aprovam apenas para os manifestantes do 8 de janeiro, 51% dos entrevistados não querem que os líderes do golpe saiam impunes, segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada em 16 de setembro de 2025.


Outra pesquisa da mesma instituição, realizada em 21 de setembro, aponta que o debate sobre a PEC da Blindagem gerou repercussão predominantemente negativa no ambiente digital, com 83% das menções sendo críticas ao texto. Diante da presença de mais de cem mil manifestantes nas ruas, evidencia-se que, em momentos críticos, a sociedade brasileira ainda é capaz de impor limites ao corporativismo parlamentar.


O que se configura como um flagrante tiro no pé de parte expressiva do Congresso pode também revelar algo mais profundo: um Legislativo fragmentado, lideranças enfraquecidas e um Parlamento que, embora possua recursos e agenda fortalecidos, busca blindar-se de responsabilizações. Mais do que um episódio conjuntural, trata-se de uma oportunidade para compreender as transformações institucionais que vêm moldando a política brasileira desde a redemocratização, sob os marcos da Constituição de 1988.


A articulação em torno da anistia a Jair Bolsonaro e a seus apoiadores foi instrumentalizada por parcela da Câmara cujo interesse real residia em assegurar imunidade penal aos parlamentares investigados pelas chamadas emendas pix. Para além do grupelho barulhento de fanáticos bolsonaristas, Bolsonaro aparece como um — perdoe-se a metáfora pessoana para alguém tão medíocre — cadáver político adiado que prossegue atuando. Seu nome funciona apenas como moeda ideológica para o Partido Liberal se manter coeso rumo a 2026, garantindo espaço em um futuro governo Tarcísio ou, na pior hipótese, assegurando uma fatia de oposição organizada.


Essa fusão de agendas antagônicas produziu um resultado paradoxal: ao amalgamar blindagem e anistia, seus defensores inviabilizaram ambas as iniciativas, escancarando a incapacidade de Hugo Motta de controlar um Congresso cada vez mais permeado por facções autônomas. A derrota do Legislativo revela, portanto, questões que transcendem a conjuntura: trata-se do efeito de uma transformação no sistema político cujo interregno, como lembra Gramsci, só produz monstruosidade. Para compreender o fenômeno, é necessário revisitar a linha do tempo e observar como o episódio expôs o esgarçamento de um modelo que, desde 1988, servia como eixo de governabilidade: o presidencialismo de coalizão.


Segundo Sérgio Abranches (1988), o presidencialismo brasileiro estruturou-se a partir de coalizões entre Executivo e Legislativo, mediadas por barganhas envolvendo cargos, recursos e acesso a políticas públicas. Esse arranjo assegurou relativa estabilidade durante a Nova República, mas sofreu abalos significativos nas últimas duas décadas: as medidas provisórias perderam a capacidade de trancar a pauta[1], esvaziando a primazia do Executivo; as emendas impositivas se tornaram regra, transformando o orçamento em arena de disputa direta entre parlamentares e governo; e o fortalecimento dos fundos partidário[2] e eleitoral[3] concedeu ao Legislativo um grau de autonomia orçamentária inédito[4].


Essa dispersão torna-se ainda mais evidente quando confrontada com os números. Em 2015, a Emenda Constitucional 86 determinou a execução obrigatória de emendas individuais equivalentes a 1,2% da receita corrente líquida; em 2020, esse percentual foi ampliado com a inclusão das emendas de bancada. Em menos de uma década, a fatia das emendas sobre as despesas discricionárias saltou de menos de 1% em 2014 para 9% em 2019 (Piola; Vieira, 2019), alcançando cerca de 27% em 2024, totalizando aproximadamente R$ 40,89 bilhões, segundo o INESC.


Além disso, as emendas consumiram 16% das chamadas “despesas livres” do governo, de acordo com o Instituto Fiscal Independente do Senado. Ou seja, uma parcela crescente do orçamento que deveria financiar políticas públicas estratégicas acabou subordinada a lógicas locais, clientelistas e negociadas. Nesse cenário, o novo Congresso brasileiro pode ser comparado ao gigante Pantagruel, de François Rabelais: um ser de apetite descomunal, capaz de devorar recursos públicos como se nunca houvesse saciedade, demandando sempre mais — mais poder, mais emendas, mais espaço na distribuição da verba. A metáfora evidencia o caráter pantagruélico de um Legislativo cuja voracidade orçamentária ameaça corroer as bases da governabilidade.


Como observa Luís Gustavo Guimarães (2020), o presidente, embora continue central no sistema, tornou-se dependente do Parlamento, aumentando os custos de coordenação e expondo as fragilidades das lideranças congressuais. Se antes o colégio de líderes funcionava como aglutinador de interesses, hoje perdeu eficácia. O controle partidário sobre recursos de campanha ainda existe, mas a lógica eleitoral em cidades médias e a capacidade de parlamentares de captar votos por meio das emendas pulverizou o poder das cúpulas. Os deputados possuem incentivos crescentes para agir de maneira independente, minando a disciplina partidária e corroendo mecanismos tradicionais de coordenação. Soma-se a isso a fragmentação partidária crônica: mesmo após a cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais, o Brasil ainda abriga mais de 25 legendas com representação, multiplicando centros de veto e encarecendo qualquer processo de agregação.


As emendas de relator, as chamadas emendas pix, levaram esse processo ao paroxismo: tornaram-se eixo central da disputa política e a principal fonte de preocupação para parlamentares, alvo de investigações no Ministério da Justiça. Nesse contexto, a PEC da Blindagem surge como reação defensiva, tentando bloquear judicializações que evocam a Lava Jato, mas adaptadas à realidade orçamentária atual.


O paralelo com a Lava Jato é inevitável. A operação revelou a sofisticação de um sistema de compra de apoio parlamentar, apoiado nos altos custos de transação que sucessivos governos petistas, principalmente nos mandatos de Dilma, preferiram superar por meio de cooptação fisiológica. Não obstante, a Lava Jato promoveu uma verdadeira faxina que, ao atingir políticos experientes e operadores hábeis, desorganizou a elite parlamentar, abrindo espaço para o improviso e o apogeu do baixo clero.


A reaparição de Michel Temer, acompanhado por figuras como Paulinho da Força, não é casual: trata-se de recompor algum grau de normalidade profissional na política, introduzindo pragmatismo para frear os arroubos de facções radicais e conter o avanço de uma justiça cada vez mais intrusiva, especialmente diante da proliferação de decisões monocráticas.


Nesse sentido, a metáfora de Michael Oakeshott se mostra precisa. Temer é o estivador que, após o naufrágio, procura recompor a tripulação e oferecer ao país uma ponte até 2026, evitando que a embarcação se desfaça em meio à tormenta. Ao contrário da política da fé, que promete redenções totais e reformas salvacionistas, a política do ceticismo busca apenas manter a ordem mínima necessária à continuidade do jogo democrático. É a aceitação, ainda que resignada, de que sujar as mãos faz parte da coordenação de interesses em um regime pluralista. Como lembra Sartre em As mãos sujas, é na sujeira das negociações que se revela a realidade concreta da política.


A provável morte conjunta das pautas da blindagem e da anistia encerra o episódio com uma imagem paradoxal: ao mesmo tempo em que a sociedade civil demonstra vigor ao rejeitar a impunidade, o Legislativo mostra-se incapaz de se recompor como espaço de coordenação estável.


Em última instância, o desfecho da PEC reafirma o dilema constitutivo do presidencialismo de coalizão: em momentos de estabilidade, o arranjo garante governabilidade; em contextos de fragmentação e judicialização, degenera em paralisia, autoproteção e erosão da legitimidade. Entre a política da fé e a política do ceticismo, o Brasil navega no fio da navalha, e apenas a prudência de atores dispostos a recompor a normalidade institucional pode evitar que a defesa das instituições se converta em álibi para perpetuar privilégios. O episódio reforça o diagnóstico de Luiz Werneck Vianna sobre a pachorrenta revolução no país: não será à contramão da nossa história que avançaremos, mas sim confiando na gramática política que, como mapa, orienta o destino da sociedade.



[1]Em 2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou que trancamento da pauta do Congresso por conta de MPs não votadas no prazo de 45 dias só alcança projetos de lei que versem sobre temas passíveis de serem tratados por Medidas Provisória, modulando decisão de 2009 do então Presidente da Câmara, Michel Temer.

[2]De acordo com TSE (2025), O Fundo Partidário distribuiu para 19 partidos cerca de R$ 573 milhões no 1º semestre.

[3]No final de agosto, Equipe econômica enviou ao Congresso para a sua apreciação, a proposta de orçamento que prevê cerca R$ 1 bilhão para o fundo eleitoral para 2026.

[4]Para o orçamento deste ano, estavam previstos R$ 81,4 bilhões para emendas de comissão e de bancada, bem como as emendas impositivas individuais e de relator.




Referência da imagem: VERNET, Claude-Joseph. A Shipwreck in Stormy Seas [Tempête]. 1773. Óleo sobre tela, 114,5 x 163,5 cm. National Gallery, Londres. Disponível em: nationalgallery.org.uk. Acesso em: 23 set. 2025.

 

Referências utilizadas


ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-34, 1988.


CÂMARA DOS DEPUTADOS. STF confirma que trancamento de pauta da Câmara por MPs não alcança todos os projetos. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/517655-stf-confirma-que-trancamento-de-pauta-da-camara-por-mps-nao-alcanca-todos-os-projetos/. Acesso em: 23 set. 2025.


CNN Brasil. PEC da Blindagem tem 83% de menções negativas nas redes, aponta Quaest. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pec-da-blindagem-tem-83-de-mencoes-negativas-nas-redes-aponta-quaest/. Acesso em: 23 set. 2025.


GUIMARÃES, Luís Gustavo Faria. O presidencialismo de coalizão no Brasil. São Paulo: Blucher, 2020.


INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos. Orçamento e Direitos: balanço da execução de políticas públicas (2024). Relatório, 2025.


OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. São Paulo: É Realizações, 2018.


SENADO FEDERAL. Poder Executivo limita pagamento de emendas parlamentares, aponta Conorf. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/08/08/poder-executivo-limita-pagamento-de-emendas-parlamentares-aponta-conorf. Acesso em: 23 set. 2025.


TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – TSE. Fundo partidário: 19 partidos receberam R$ 573 milhões no 1º semestre. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Julho/fundo-partidario-19-partidos-receberam-r-573-milhoes-no-1o-semestre. Acesso em: 23 set. 2025.


VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

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