NÃO POSSO SER SEU NEGRO
- Miguel Pereira Filho

- há 1 dia
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O ano era 2012 e eu estava no segundo semestre da graduação. Os professores haviam entrado em greve e meus colegas discutiam a viabilidade de uma participação estudantil em apoio ao movimento. Fui o único a me posicionar abertamente contra: nenhuma das pautas contemplava as necessidades discentes. Pior: o que estava em jogo era apenas o aumento salarial e a reestruturação da carreira docente — reivindicações legítimas, sem dúvida, mas que não diziam respeito aos nossos problemas. Àquela altura, estava claro para mim que uma greve estudantil deveria se orientar pelas nossas próprias demandas.
O leitor provavelmente terá uma opinião contrária, e há excelentes argumentos nesse sentido. Mas, naquela tarde, o que me chamou atenção não foram os contra-argumentos à minha posição, e sim a resposta de uma colega, dessas muito progressistas e sempre engajadas em tudo o que é bom, belo e justo: “não suporto pobre de direita”. Eu jamais havia mencionado minha origem social — que, aliás, ela presumiu equivocadamente, pois, sendo filho mais novo, nasci quando meus pais já haviam ascendido à classe média. Após o silêncio constrangedor que se seguiu — aquele que o público faz quando o ator deixa cair, por descuido, a máscara indispensável à sua performance —, a circunscrição de quem eu era naquele meio, e de quem deveria ser, ficou abertamente clara. E, infelizmente, essa não foi a primeira vez em que fui racialmente circunscrito, na faculdade ou em outros espaços. A minha cor, antes, durante e depois, seria sempre um marcador que me precederia, informando ao meu interlocutor quem eu era — e quem deveria ser —, independentemente do que eu pensasse.
Essa sina não é apenas uma passagem biográfica, mas parece atravessar todos aqueles que, fenotipicamente, descendem dos africanos sequestrados e trazidos para o Brasil. Ou, para usar o termo do bingo identitário, os “frutos da diáspora africana”. Recentemente, ao ler A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, deparei-me com a seguinte situação: T.C. Elimane, escritor massacrado pela crítica, é julgado não pela obra, mas pela cor da mão que a escreveu. Em certo momento, refletindo sobre as críticas dirigidas ao autor, a personagem Thérèse afirma: “Nós vimos nele o escritor excepcional, não o negro erudito. Ao contrário de vocês. (…) objeto de uma curiosidade aviltante”.
A definição contemporânea do que é “ser negro” passa por disputas simbólicas cujo desfecho parece um beco sem saída. A saída mais fácil é pensar na cor da pele, mas essa resposta — num país altamente miscigenado — se revela insuficiente. Quando o raciocínio migra para o campo da cultura, tudo se torna mais intricado: afinal, do que se fala quando se fala em “cultura negra”?
Antes de mais nada, é necessário refletir sobre a genealogia da palavra — e talvez pouco na modernidade carregue tanta ambiguidade quanto o conceito de “negro”. Pensar sua origem é delinear os contornos iniciais de sua inscrição no mundo. O termo não surge como autodescrição daqueles que, vítimas do comércio humano na África, foram sequestrados. Ele nasce da violência colonial, como categoria capaz de homogeneizar pessoas que, ao pisarem nas Américas, foram transformadas em coisa: capital (des)humano do sistema escravista consolidado no século XVI. Como lembra Achille Mbembe, a modernidade não apenas escravizou africanos — ela os inventou como “negros”. O termo circunscreve, pela violência física e simbólica, uma cartografia destinada a apagar trajetórias, perspectivas e potência. A partir dali, ao chegar ao Novo Mundo, seríamos todos negros.
Assim, o termo surge como ficção — um artifício criado pelo colonizador, que, por contraste, passa a ser “branco”. Mas, pelo poder da repetição, essa ficção se desprende da narrativa original e se torna visão de mundo. O que era violência classificatória passa a ser identidade possível — e, muitas vezes, necessária. Todavia, essa necessidade não anula o fato de que o termo foi forjado como instrumento de dominação. Antes mesmo de descrever uma pessoa concreta, um indivíduo existente, o “negro” opera como figuração que precede o sujeito, como um estigma projetado sobre corpos que deveriam, segundo a lógica colonial, ocupar determinada posição. Milhares de histórias, genealogias e formas de existência foram comprimidas nesse signo homogêneo e útil à contabilidade colonial. O conceito de raça — sobretudo o de negro — dissolve a humanidade em uma abstração racial. O corpo escravizado não era pessoa; era peça, índice, código. O “negro” não é dado: é tecnologia.
É nesse ponto que surge a questão: ao reivindicar a identidade negra como forma de resistência, não estaríamos reproduzindo traços da gramática colonial que estruturou o próprio termo? Sem negar a importância política dos movimentos antirracistas, cabe perguntar até que ponto o combate à raça não opera dentro da mesma lógica que a produziu. Assim como, ao criticar a colonização portuguesa, não posso fazê-lo senão usando a língua do colonizador.
Nessa cartografia da raça, o mapa simbólico do “negro” não indicava cor, mas posição — na economia, na hierarquia, na imaginação. Corpos só podiam ocupar lugares previamente marcados: força antes de pensamento, emoção antes de razão, instinto antes de linguagem. Esse mapa continua a operar mesmo quando tentamos subvertê-lo, pois o signo carrega suas bordas.
A afirmação identitária, ao construir um “povo preto”, foi fundamental na formação de movimentos políticos e na criação de solidariedades. No entanto, é preciso indagar até que ponto a reapropriação positiva do termo não acaba criando nova cartografia: um gueto simbólico onde pertencimento exige renegar os “iguais” considerados inadequados.
E aqui, o risco da territorialização não vem apenas dos algozes, mas também da reação — que, em certos momentos, assume traços de reacionarismo. Não é raro que, de ambos os lados, o resultado seja um festival de clichês, uma delimitação que reproduz a impotência que se pretendia combater. A malícia, neste caso, esconde-se atrás de gestos supostamente emancipatórios. Desde que o debate sobre a “palmitagem” entrou no espaço público, sempre me pareceu uma reiteração daquilo que deveria ser destruído. Não se trata de ignorar estatísticas, muito menos as fotos de pré-Copa que exibem a cor da pele das esposas de jogadores, indicando status. Mas falar em “amor racialmente referenciado” não é reiterar o discurso que criou o racismo?
A reivindicação de orgulho pode reiterar a lógica generalizante do colonizador. Se a violência dizia “todos os negros são assim”, certas correntes identitárias respondem “há um ser negro universal”, invertendo o sinal, mas preservando a estrutura. Já ouvi quem afirmasse que o cristianismo de matriz evangélica “invadiu” os bairros populares — como se esse cristianismo não tivesse surgido, séculos antes, na própria África. Não se trata de negar a política antirracista, mas de evitar que a raça se torne ortodoxia — uma metafísica da diferença que repete aquilo que buscava superar. Nomear experiência sem que o nome se torne destino: esse é o dilema. E, nesse processo, até discursos que se pretendem libertadores reproduzem dispositivos de captura: para alguns, o negro é permitido, desde que desempenhe o papel designado.
A domesticação simbólica do sujeito negro torna-se salvo-conduto para sua presença. No espaço acadêmico, sua existência parece só fazer sentido se desempenhar o papel do negro engajado, obrigatoriamente alinhado às teses sancionadas por certa elite intelectual. Criticar “racismo estrutural” é visto como traição; questionar “lugar de fala” é tentativa de silenciar vozes. O debate, que poderia ser encontro de ideias, transforma-se num RPG moral em que vence quem tem mais desvantagens acumuladas.
A pergunta que fica é: como imaginar uma política não aprisionada à lógica racial? A luta contra o racismo é indispensável; o problema é permitir que ele defina os limites de quem podemos ser. Não se trata de esvaziar a identidade de potência política, e sim de impedir que o mapa colonial molde todas as possibilidades de existir.
O fim da cartografia do negro implica uma crítica que, ao propor descolonização, ofereça linhas de fuga capazes de restituir a potência humana. Isso exige reconhecer como afrodescendentes ajudaram a produzir uma cultura nova, uma experiência civilizatória inescapável. Nossa forma de pensar, falar e amar é consequência inesperada da experiência colonial: monumento à barbárie e à civilização. Recusar a cartografia do negro é recusar que a modernidade colonial defina, em última instância, o que significa “negro”, permitindo o surgimento de outras linguagens, vocabulários e mundos. Se a escravidão fabricou o negro, a liberdade exige fabricar outro vocabulário.
Na biografia de Léon Trotsky, o historiador Isaac Deutscher narra que, ao cruzarem uma ponte em Londres, um interlocutor se referiu à Abadia de Westminster como obra “deles” (da burguesia). Trotsky respondeu: “não, é nossa abadia, nossa ponte”. Cultura alguma pode ser — nem há como — um tesouro enclausurado em museus abarrotados de peças roubadas do mundo inteiro.
Talvez a política antirracista do século XXI dependa justamente disso: sustentar a identidade negra como instrumento estratégico, sem deixá-la virar destino; defender vidas negras sem transformar “negro” em categoria ontológica; imaginar mundos nos quais possamos existir para além da cartografia colonial — sem apagar o passado, mas recusando que ele continue delimitando o futuro.
Retomo T.C. Elimane: “finalmente entendi que, em literatura, não é apenas raro ser compreendido; enquanto escritor, é preciso fazer de tudo para não ser completamente compreendido”. Talvez não seja só sobre literatura que estejamos falando.
Referências bibliográficas:
DEUTSCHER, I. Trotski: o profeta armado. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1ºed. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança.
SARR, Mohamed Mbougar. A mais recôndita memória dos homens. Tradução de Diogo Cardoso. São Paulo: Fósforo, 2023.
IMAGEM: ROSALLES, Harmonia. Migration of the Gods. 2017. Pintura. Disponível em: https://www.harmoniarosales.art/catalogue/migration-of-the-gods. Acesso em: 7 fev. 2025.



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