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O 02 DE FRUTIDOR


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O julgamento da cúpula golpista, que hoje ocupa o centro da cena política brasileira, não pode ser compreendido apenas como um episódio isolado ou um ato de exceção; ao contrário, deve ser lido como um momento de condensação histórica, no qual se revelam as tensões permanentes entre legalidade e força, entre Estado de direito e vocação autoritária, que atravessam a formação nacional desde o advento da República.


A ação do Supremo Tribunal Federal, ao condenar articuladores e financiadores de um projeto que atentava contra a democracia, apresenta-se como exercício daquilo que parte da teoria política contemporânea denominou “democracia militante”, isto é, a necessidade de que a ordem constitucional, diante de ameaças existenciais, assuma a tarefa de defender-se ativamente, ainda que ao custo de restringir certas liberdades individuais. Mas, como alerta Faoro em Os donos do poder, essa mesma ordem jurídica é historicamente permeada por uma elite que se instala no aparelho do Estado e o instrumentaliza em proveito próprio, produzindo uma tensão insolúvel entre a promessa de cidadania universal e a realidade do privilégio patrimonialista.


Se a leitura de Faoro ilumina a permanência estrutural da elite dirigente, é Marx, no 18 de Brumário, quem nos oferece uma chave analítica decisiva para compreender o nascimento de governos após golpes militares. No capítulo II, Marx descreve como, após o golpe, instaura-se um governo que tem sua origem na violência e na suspensão da ordem legal, mas que, para consolidar-se, precisa assumir a aparência da legalidade, teatralizando formas institucionais que já não possuem substância. Essa encenação farsesca de juridicidade não é mero detalhe: constitui a própria condição de sobrevivência do novo regime, que só se mantém ao apresentar-se como continuidade, mesmo quando resulta de ruptura violenta. A analogia com o Brasil é inevitável: em 1964, os militares se apresentaram como defensores da democracia contra o “perigo vermelho”, ao passo que instauravam um regime de exceção sustentado pelo arbítrio. Do mesmo modo, hoje, certos atores políticos buscam justificar o autoritarismo sob a roupagem de defesa da legalidade e da moralidade, num gesto que repete, sob novas formas, a mesma lógica bonapartista.


Nesse sentido, o julgamento atual da cúpula golpista não é apenas o desfecho jurídico de um processo criminal, mas também a cena de um embate simbólico entre duas tradições: de um lado, a vocação histórica de elites que, por meio de rupturas e golpes, buscam perpetuar-se como instância dirigente do Estado; de outro, a tentativa, ainda frágil, de uma democracia que se pretende substantiva, mas que encontra limites quando depende de um poder judiciário hipertrofiado para garantir sua sobrevivência. A experiência recente mostra que o STF não apenas julgou, mas ocupou o vácuo de autoridade política deixado pelo Executivo e pelo Legislativo, assumindo um papel que, embora justificado pela urgência, reatualiza o dilema da soberania tutelada, tão caro à tradição autoritária brasileira.


Se, como sugere Marx, todo governo nascido de um golpe precisa encenar legalidade para permanecer, o julgamento da cúpula golpista revela o movimento inverso: é a legalidade, desta vez, que precisa assumir a forma de força para não sucumbir à ameaça de dissolução. A tensão entre pureza normativa e violência fundadora retorna, sob outra chave, ao coração da nossa experiência democrática. Tal como em Sartre, a política aparece aqui como o lugar do trágico: entre sujar as mãos em nome da eficácia ou mantê-las limpas à custa da impotência. Ao condenar os golpistas, o STF reivindica para si a legitimidade de sujar as mãos em defesa da democracia, mas o faz num cenário em que as instituições que deveriam representar a soberania popular mostram-se fragilizadas, permitindo que o Judiciário se transforme em árbitro supremo do jogo político.


Portanto, longe de significar apenas a vitória da ordem sobre o caos, o julgamento recoloca diante de nós a velha questão: até que ponto a democracia brasileira pode sobreviver sem enfrentar sua própria genealogia autoritária. Ao mesmo tempo em que marca a derrota de um projeto golpista, o episódio revela a permanência de um padrão de tutela, em que o povo é reiteradamente afastado da cena decisória e substituído por elites — sejam militares, políticas ou jurídicas — que se arrogam o direito de falar em seu nome. Nesse paradoxo, encontra-se a continuidade de uma história que, como em Marx, repete-se com novas roupagens, sempre oscilando entre força e legalidade, entre ruptura e continuidade, entre a promessa de emancipação e a realidade da dominação.


FONTES:


Referência da obra: RIVERA, Diego. The Uprising. 1931. Óleo sobre tela, 152,4 × 127 cm. The Museum of Modern Art, Nova York. Disponível em: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2011/rivera/mobile/mural_details/the_uprising.html. Acesso em: 2 set. 2025.


FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2001.


MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.


SARTRE, Jean-Paul. As mãos sujas. Tradução de Ari Rocha. São Paulo: Abril Cultural, 1974.


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