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O ACARAJÉ E O "AFRICANO"


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*Ivaldo Marciano de França Lima



Quais as relações entre uma dada representação de um espaço, o ensino e o dia a dia das pessoas? O caso do “africano” que foi comer um acarajé pela primeira vez em sua vida.

 

Imaginemos uma cena, prezado leitor e estimada leitora: alguém leva um amigo para conhecer uma iguaria típica da Bahia, com o ímpeto de promover o acolhimento de quem está chegando a estas terras. Acrescente a isto o fato que esta pessoa, que não conhece a iguaria referida, não nasceu em terras brasileiras, ainda que seja falante do português. Ao chegar no ponto de vendas, o visitante desfere perguntas sobre aquilo que vai experimentar, algo normal em se tratando de alguém que seja minimamente comedido. Então, perguntas do tipo “o que é isto?”, “De que é feito?”, “O que acompanha?”, dentre outras, seriam consideradas normais se o caso não dispusesse das seguintes descrições: a vendedora de acarajés, tipicamente brasileira (e baiana!), acreditava que seu ilustre cliente, nascido em Angola, se encaixava em todos os estereótipos existentes nos referenciais de quem algum dia foi à escola e aprendeu algo sobre um “lugar” nomeado por “África”. A vendedora mostrou-se chateada com as perguntas, e de imediato resmungou: “e por acaso o nosso acarajé não é tão bom quanto o de vocês? Por qual motivo tantas perguntas para algo que vocês conhecem tão bem?” Foi necessário que eu interferisse e explicasse que o nosso visitante nunca tinha visto um “acarajé em sua vida, e que para tornar mais confuso o contexto, discorri rapidamente para a nossa “empreendedora das iguarias” que o amigo também não sabia o que era candomblé, e que ele, para deixar nossa comerciante mais confusa, era signatário da Igreja Adventista, e como tal, não comia camarões, tal qual o interdito imposto no Antigo Testamento. De cara, a comerciante de acarajés teve dois choques: um “africano” que não sabia o que era acarajé e que praticava uma religião “de brancos”, pois na sua compreensão, o cristianismo, assim como todas as suas vertentes e denominações, constitui constructos advindos de outro “lugar” nomeado por Europa. A cena foi ligeiramente tensa, ainda que vivida com leveza mediante o modo como a encaramos.


Neste “lugar” nomeado por África (ou “país”, conforme variações desta representação que grassa o senso comum), além das descrições acima indicadas, referentes ao acarajé e ao candomblé, há também os acréscimos de que seus habitantes se reconhecem como negros (e possuem identidade negra tal qual os brasileiros que assim se reconhecem), praticam a capoeira e são exímios dançarinos. Ora, quantas vezes não ouvi de meus colegas de ofício que o acarajé foi “trazido” nos porões dos navios negreiros, assim como o candomblé e a capoeira, dentre outras tantas práticas e costumes culturais?


Sim! Esta descrição acima é de fato predominante não apenas no senso comum, entre as pessoas mais simples, mas também em meio àqueles ditos mais cultos, que lecionam nas universidades e possuem títulos de doutorado e mestrado. Estas representações sobre África que existem em nossa sociedade não constituem atestado de inteligência ou o seu oposto. Elas são resultantes de construções operadas por meios diversos, através de histórias em quadrinhos, filmes, desenhos animados, músicas e discursos, que somados uns aos outros corroboraram numa retroalimentação de uma África homogênea, indistinta e destituída de diferenças e pluralidades.


Foi preciso indicar para a nossa “agora amiga” comerciante de acarajés, que o continente africano não possui aderência com suas representações existentes no Brasil. Via de regra, as descrições e imagens que temos em nosso país sobre o continente africano pautam ou pela indistinção das imagens, ou por perspectivas apoiadas na miséria, fome, pobreza, guerras, corrupção. Também é comum termos as duas representações associadas, no caso, “um lugar de negros que vive às voltas com as guerras e a miséria”. Sobre as religiões, por exemplo, pode se afirmar que esta ideia de que há uma apenas, praticada por toda a população, nem de longe indica o que há de fato no outro lado do Oceano Atlântico. As duas maiores religiões existentes no continente, que por acaso é dividido em 54 países conforme a ONU, são o islamismo e o cristianismo. Aliás, eu diria que, em relação a esta última, é possível afirmar que se encontra presente no que hoje denominamos por África em tempos bem anteriores ao de sua chegada ao continente europeu. Sim senhor! Sim senhora! O segundo estado nacional a adotar o cristianismo como religião de Estado foi Axum, definido numa historiografia mais convencional como “Império Axumita”, e isto ainda no século II da era cristã. Seus atuais herdeiros, os etíopes, ainda hoje se proclamam cristãos e declaram que a Arca da Aliança se encontra em um dos templos da Igreja Católica Apostólica Etíope.


Ainda sobre as representações a que me referi, pode-se indicar que a cor da pele, na maior parte dos países existentes em África, não constitui um ponto que seja significativo para a construção de laços. Um bakongo, por exemplo, ainda que tenha a mesma cor de pele de um ovimbundu, não terá para este a mesma disposição de diálogo e simpatia que irá entregar para alguém que fale sua língua, no caso o kikongo. Não que a diferença constitua impedimento para estabelecer relações, longe disso, mas o fato de ser falante da mesma língua é certamente muito mais importante do que ter a mesma cor de pele. Logo, as identidades tecidas e construídas nos diversos países situados em África não ocorrem da mesma forma que se pensa nestas representações que grassam na sociedade brasileira.


Foi preciso muita paciência e, ao mesmo tempo leveza para explicar tudo isso à nossa amiga, comerciante da deliciosa iguaria brasileira e baiana. Sim, prezado leitor e estimada leitora, o acarajé é bem brasileiro, assim como a capoeira e o candomblé. Foram inventados por brasileiros, ainda que sob inspiração de práticas e costumes advindos de outros espaços.


Ainda bem que o amigo a que me referi acima, estudante do doutorado em Difusão do Conhecimento, curso ofertado pela UFBA, UNEB e IFBA, é calmo e paciente, e soube “tirar de letra” o ocorrido. E nossa amiga, por óbvio, irá doravante replicar parte das informações que recebeu de nós (eu e meu amigo), de que cor de pele, língua, religião, comidas e práticas culturais não existem necessariamente, tal qual indicadas nas representações que grassam o senso comum brasileiro.


E o ensino? Onde entrará nesta breve crônica, dirá o leitor e/ou a leitora, que tiveram a paciência de chegar até este ponto da leitura. Bem, é preciso com urgência formar (e reformar) os professores da educação básica, e mesmo os que estão nas universidades. É fundamental indicar que não existe, no âmbito da cultura, nada que seja universal no continente africano. Não é razoável continuarmos ensinando nas escolas representações tão destoantes da “coisa representada”, causando estranhamentos tão corriqueiros entre as pessoas que vêm do continente africano ao nosso país, e aqui são surpreendidas com descrições que pouco ou quase nada fazem sentido. É preciso ensinar diferente, mostrar que Malawi e Moçambique não são um só país, e que Angola e Guiné-Bissau estão distantes um do outro por milhares de quilômetros. É preciso rever os livros didáticos, assim como os paradidáticos, e sugerir que no continente africano há povos, e que estes falam pelo menos três mil línguas diferentes. É fundamental, sobretudo, reconhecer que uma prática cultural, seja ela qual for, se encontra associada a um determinado contexto, e como tal, não possui meios de ser transportada para outro espaço, seja ele qual for. Logo, é importante, além de imprescindível, reconhecer o acarajé, a capoeira, o candomblé, dentre outros, como invenções de brasileiros e brasileiras, e como tal, parte integrante de nossa cultura e identidade.


Enfim, prezado leitor e estimada leitora, é preciso ler mais, estudar e ao mesmo tempo, dispor de paciência para com o outro, ainda que em nossa mente tenhamos certas certezas de que o conhecemos tão bem, como foi o caso da comerciante de acarajés e do ilustre amigo angolano, que se reconhece como ovimbundu, e não como alguém que expresse uma identidade decorrente da cor de sua pele.



*Professor de História da África no curso de História da UNEB, campus Alagoinhas, nascido no Recife, Pernambuco, e declaradamente torcedor do Santa Cruz FC do Recife. Também integra o Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África (PPGEARA – UNEB DEDC XV), além do Difusão do Conhecimento (PPGDC - UFBA, UNEB, IFBA) e do Estudos Étnicos e Africanos (Pós Afro – UFBA)

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