O DOCUMENTÁRIO “A MULHER DA CASA ABANDONADA” É RUIM
- Karla Fontoura
- 18 de set.
- 6 min de leitura

Desculpe pelo título propositalmente claro e cristalino. Pelo mesmo motivo que matei sua curiosidade em dois segundos de leitura do título desse texto, declarando em todas as letras o seu conteúdo, a Série documental "A Mulher da Casa Abandonada" não se deu ao trabalho, ao longo de seus 3 longos episódios, de esconder o que queria dizer - e como dizer. Isso fez com que tal obra cinematográfica se tornasse um conteúdo difícil de engolir para mim e (espero que) para consideravelmente muitas outras pessoas. Seu formato revelou os vícios de consumo de uma audiência que recebe produtos artísticos a partir da força das redes sociais. E isso assusta. Muito.
O que é "A Mulher da Casa Abandonada"? É uma série documental lançada na Prime Video baseada em um podcast homônimo de sucesso produzido pelo jornalista Chico Felitti. Em 2022, o podcast foi um dos mais ouvidos no país e apresenta uma investigação do jornalista sobre a dona de uma mansão em ruínas em um dos bairros mais nobres de São Paulo. A história toma grandes proporções quando é descoberto que, mais do que uma figura singular naquele cenário contraditório de ruínas e ostentação, Margarida Bonetti, a protagonista da curiosidade de Felitti, era procurada pela polícia dos EUA por um crime terrível cometido a empregada doméstica que trabalhou por décadas na sua casa.
As camadas dessa narrativa são suficientes para produzir um documentário super interessante. Trazem muitas nuances da cultura brasileira, da relação racial, do contraste de classes e da estrutura elitista do país. É muita coisa a ser debatida ao explicar o que aconteceu no passado e como se desenrola até hoje. Não à toa, o podcast criou um frisson nas redes sociais, com pessoas discutindo a escravidão dos dias modernos a influenciadores indo a casa em pedaços promover dancinhas virais. Teve transmissão ao vivo pelo Datena mostrando a polícia adentrando a casa para avaliar a condição da senhora e do ambiente em que ela vivia, tomado pelo lixo, sujeira, descaso e acumulação de objetos. Tudo virou um grande espetáculo! A série chegaria para explicar todos esses detalhes, mostrando rostos e dando protagonismo a Hilda Rosa dos Santos, vítima das agressões da Margarida nos anos em que foi sua empregada nos EUA.
Foi atenta a todo esse cenário que me animei a assistir o documentário "A Mulher da Casa Abandonada" mas, o que encontrei, foi a rapidez dos virais curtos de TikTok, os efeitos sonoros de um conteúdo de YouTube e a explicitação escancarada de vídeos de IA que se propagam nos reels do Instagram. A história é contada e mostrada no literal. “Eu estava caminhando na rua”, diz Felitti. Corta para a cena dele andando exatamente na rua comentada. Outra pessoa diz que se aproximou do portão e viu a senhora na janela. O que acontece? Sim, a mesma pessoa encena essa aproximação no portão. Em seguida, surge uma representação da Margarida, dentro de sua casa abandonada, espiando que está sendo observada.
A série documental usou (e abusou!) do recurso da simulação dos acontecimentos por meio de cenários dignos de grandes filmes de cinema: atores muito super caracterizados, fotografia de alto nível e takes de câmeras bem encenados. Infelizmente, a qualidade dessas cenas não teve força suficiente para impactar positivamente o conteúdo do documentário “A Mulher da Casa Abandonada”. Entre os depoimentos das pessoas envolvidas na história, cortes da rua citada, da casa da Margarida nos EUA e a apresentação de documentos ou reportagens, o documentário não deixa a audiência respirar um segundo sequer. A simulação recorta todas as narrativas, diretas e indiretas, entregando o óbvio. Como comentado antes, as próprias pessoas da fala encenam o que dizem. O ápice foi a série fazer o policial americano, que seriamente apresentava seu processo investigativo sobre o que acontecia com Hilda na casa de Margarida, falar que foi até a casa e bateu na porta da suspeita e a cena cortar para o próprio caminhando na mesma casa e batendo na porta...
Essa gastura foi mais difícil de ser digerida já que, no dia anterior, eu havia assistido o fenomenal documentário “Edifício Master” de Eduardo Coutinho, incluído em 2015 na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), e que acabou de entrar na Netflix. A obra entrevista os moradores do prédio que abriga cerca de 276 apartamentos, capturando suas histórias de vida. São pessoas comuns, com enredos extraordinários e muitas vezes comoventes, retratadas por lentes sensíveis e tranquilas que gastam tempo nos rostos que se apresentam diante delas. Não há pressa, inúmeros cortes, ou efeitos de som. Os silêncios são bem vindos, assim como as risadas e os choros dos protagonistas de suas histórias. Há tempo para viver naquele personagem e embarcar, por alguns minutos, em sua jornada.
Quando se coloca essa produção ao lado da série documental “A Mulher da Casa Abandonada", é gritante a discrepância em retratar a vida. Se o primeiro mergulhou no que ouviu e viu, o segundo quis tomar as rédeas da emoção, em todos os sentidos, com seus efeitos e retratações exuberantes. Vamos dar uma colher de chá e considerar que a série queria trazer uma energia de true crime, modalidade que tem despontado nos últimos anos pelo mundo. Com isso, seria natural essa velocidade e a necessidade de representar tudo, em tantos detalhes, para que o telespectador consuma a história por inteiro. Mas seria tão impossível quebrar em um momento esse ritmo frenético? Especialmente quando o conteúdo apresenta (pela primeira vez!) o depoimento de Hilda, a vítima da terrível situação de cárcere privado, maus tratos e abuso psicológico e físico?
Usando uma linguagem mais cinematográfica me permita dizer algo: a Hilda é impressionante! Fora de tudo o que esperamos, ela preenche a tela com muita informação. Seu olhar é uma mistura de dor e doçura que afeta nossa alma diretamente. Sua fala, misturada e entrecortada por um português que ela desenvolveu de forma única por não ter acesso à educação e ainda morar num país estrangeiro por tantos anos, é intrigante e entrega muito de sua história. A maneira como ela descreve a “Dona Margô”, contorcendo seu rosto com nojo e raiva e passando as mãos sobre ele, como se quisesse apagar as memórias que lhe assombram, é tudo o que precisávamos. Porém, nada disso consegue ser devidamente absorvido com a doçura, leveza e até crueza que merecia. A direção, juntamente com a produção, decide cortar aquela imagem potente com mais simulações ou, quando elas acabam, com cenas da própria Hilda pintando seus coloridos quadros nas pontas dos dedos. Ou detalhes da casa que ela mora. Ou ela olhando pela janela. Ou caminhando na rua. Enfim, sempre mais e mais cortes. Nenhum contentamento em simplesmente deixar a câmera ali, entregando a força e grandeza de Hilda.
O que se pode concluir, infelizmente, é que o documentário “A Casa da Mulher Abandonada” quis seguir o frisson que causou nas redes sociais e adotou a estética desses espaços para não perder a audiência que ajudou a alavancar o podcast. A obra parece rendida a essa estética no intuito de não perder o ímpeto que causou anteriormente. E aí caímos na progressiva trepidação do olhar estético. Chega de calmarias. Chega de duplo sentido ou subentendimento. Se fala o óbvio, se mostra o óbvio, para que não haja dúvidas do que é. A arte é engolida com a leveza de um mousse de maracujá bem docinho. Diminui-se o contraditório, os não-ditos, as sutilezas, porque isso amarga e afasta audiências.
Estamos no momento mais contraditório quando pensamos em produções audiovisuais. Com a ampliação do acesso a internet, temos mais informações à mão. Um clique e achamos tudo o que precisamos. Com IA, ganhamos resumos claros e fáceis de ler. Tal novidade poderia nos tornar mais preparados para ampliar a visão sobre o que consumimos esteticamente, abrindo espaço para testar sutilezas. Que nada! O que estamos ganhando com essa cultura cibernética é o ponto-por-ponto sendo mostrado, sem meia vírgula. É o que é. Confusa, eu te questiono: se temos mais informações por que explicamos mais? Porque as informações só nos confundem e não nos preparam. Não nos elevam, nem nos refinam. Estamos sem tempo, sem espaço e sem vontade. Então, a série documental “A Casa da Mulher Abandonada" cumpriu seu papel muito bem. Um conteúdo raso e sem meia explicações. Recebam o mastigado do mastigado. Ruim, muito ruim.
FONTE:
Fonte da imagem: https://jovempan.com.br/entretenimento/a-mulher-da-casa-abandonada-ganha-serie-documental-com-revelacoes-ineditas-no-prime-video.html
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