Quando o assunto é machismo, pressão estética e estética padrão, acredito que estou descobrindo muitas coisas e uma delas tem me ajudado muito: estou aprendendo a ser feia.
Talvez alguém leia isso e pense: “Não fale isso de você! Você é linda!”. De fato, a palavra feia tem um peso enorme na nossa sociedade e até na educação infantil é utilizada para qualificar atitudes: “Que coisa feia que você fez, Joãozinho”. Mas quero ir a fundo nesse assunto e demonstrar como é importante (até para a autoestima!) você aprender a ser feia. Se falamos que algo não tem beleza, é porque a outra variação oposta teria a sua presença, seria o “bonito”. E como sabemos disso? Quem diferencia uma característica estética para o patamar mais alto ou mais baixo? Uma leve estudada em culturas ao longo do tempo já nos ajuda a compreender que esse conceito de beleza varia de região, tempo e circunstâncias. Certos povos consideram queixos pontudos como um ideal estético, enquanto outros repudiam e até classificam como uma “aparência de bruxa”.
Quem sabe você já tenha visitado essa ideia e até se aprofundado no conceito “Mito da Beleza” de Naomi Wolf, chegando ao ponto de aprender a enxergar a vida pela via do body positive, ou seja, entender a singularidade de cada corpo e conseguir enxergar beleza nisso. Consequentemente, você pode estar vivenciando todo esse caminho para seu próprio corpo e a história por trás dele, aprendendo a amar as marcas, as manchas, as estrias e todos os outros traços que, um dia, foram despejados para você como “feios”. É a partir desse ponto que eu quero avançar um pouco mais e propor a ideia de aprender a ser feia. Não a feiura ditada pelo padrão, pela sociedade machista e transfóbica, pelas vozes guardadas pela sua mente. Quero te falar sobre a ideia de tolerar a feiura que vem da sua própria opinião e gosto, afinal, mesmo que a gente se desconstrua bastante, sempre temos nossas preferências que definem o olhar ao ver uma estética ora como bela, ora como não bela.
Tenho um exemplo que vai cair como uma luva para explicar bem o assunto. Um situação clássica na minha família de três mulheres (eu, uma mãe e uma irmã) é estarmos no quarto nos arrumando para ir a um lugar e minha mãe observar atentamente o momento em que, enroladas em uma toalha, seguimos a gaveta de calcinhas e escolhemos a opção para aquele dia. Entre um tecido ou outro, uma cor ou outra, pegamos nossa calcinha e, na hora de colocar, minha mãe puxa o sermão: “Que calcinha horrorosa é essa?”, diz com indignação. A gente sempre argumentava a mesma coisa: era a mais confortável. A resposta não deixava minha mãe nada satisfeita e ela rapidamente trocava as calcinhas, escolhendo uma mais bonita, arrumadinha, mesmo que fosse de um tamanho e tecido mais desconfortável. Não cedíamos a tentativa dela e falávamos o óbvio: “Ninguém vai ver o que está por baixo, mãe!”. E ela fechava a conversa com seu discurso final: “Ah é? E se você sofrer um acidente? Vai querer aparecer na rua com uma calcinha feia dessa? Paramédico, enfermeira, médico, tudo vendo essa calcinha horrorosa?!”, dizia ela sem qualquer tom jocoso.
Minha mãe acreditava piamente que a beleza feminina precisava prever todos os olhares, mesmo nas situações mais assustadoras, como um acidente. Vejo essa fala como um retrato claro da nossa condição de opressão estética na sociedade. Estar bela em um acidente era mais importante do que nossa própria integridade física. Por isso, eu quero deixar claro que, por mais que nos livremos da pressão estética em assumir um padrão, estamos encarceradas a ideia de não abandonarmos nunca a beleza, seja a que ditam para nós, seja aquela que estamos tentando encontrar, aceitando todos os defeitos e ressignificando-os.
E se a gente se olhar no espelho e se vê feia, completamente feia? O cabelo não está do jeito que você gosta, a roupa parece que não combina contigo, as unhas não estão feitas, as olheiras dominam sua cara e a pele parece ressecada. Tudo isso não precisa ser visto com beleza, não necessita ser encaixado em um outro significado sobre o que a sociedade não aceita como bonito. Naquele momento, você pode estar simplesmente feia e isso ser uma condição que faz parte de você, assim como qualquer homem que sabe que não será questionado em termos de aparência e consegue ir tranquilamente para um evento importante de camisa de futebol e boné, sem se sentir constrangido ou pressionado a trocar de trajes.
Eu entendo o quão difícil é ultrapassar mais este obstáculo da nossa aparência, algo que mobiliza nossa subjetificação. Lembro que quando ia para uma balada específica e havia um fotógrafo na multidão chamando as pessoas para as fotos, eu sempre fugia, porque não sabia como me posicionar na frente dele e ficava com medo de sair feia. Não à toa, no dia que tive coragem de fazer isso, eu realmente fiquei esquisita, toda dura e sem transmitir um centímetro de beleza que eu sabia que tinha. Fiquei tão constrangida com essa situação que passei a observar na balada como as pessoas conseguiam tirar fotos e saírem bonitas nelas. Acredite, muitas delas nem tinham uma beleza padrão presencialmente, mas sabiam exatamente os ângulos do rosto-corpo para se tornar uma imagem agradável ao clique do fotógrafo. Ou seja, dá trabalho expressar essa beleza para a maioria de nós e por isso, se manter sempre bonita, em todas as circunstâncias, é mais uma forma de consumir nossa energia, inteligência e criatividade para algo que provavelmente não te dará nada em troca.
Por isso, a intenção nesse texto é falar que eu acredito que faz parte da organização e fortalecimento da nossa autoestima, especialmente nas mulheres, devido a toda pressão estética e a valoração da beleza em sua identidade social, considerar a feiura, seja do olhar do outro ou do nosso próprio ponto de vista, como parte do ser completo. E, mais ainda, respeitar e normalizar a presença do não belo ao ponto de conseguir sair de casa, ir a eventos sociais, posar para fotos e outras tantas atividades em que nós somos condicionadas a nos sentir bem apenas se temos certeza que estamos seguras sobre a nossa beleza. Como a Alexandra Gurgel fala muito bem: “Tá se sentindo feia? Pois vá feia mesmo!”. E esse é meu desafio de agora: ser feia - até para mim mesma.
Fonte:
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Editora Record, 2018.
Fonte da imagem: https://labdicasjornalismo.com/noticia/10758/pressao-estetica-e-a-busca-incessante-pela-beleza-irreal-da-internet
Comments