O PARADOXO DOS MOVIMENTOS DE RUA
- Alan Rangel

- 12 de set.
- 4 min de leitura

Inicialmente, é preciso destacar algo factual: as pessoas estão saindo de casa para fins coletivos. Isso significa a existência de um movimento, e não é só brasileiro, de reivindicar. Não estou entrando no mérito do conteúdo em si. Mas não dá para negar que a rua se tornou um espaço político permanente e participativo, para além das arenas tradicionais.
A segunda coisa é sobre o grau de clareza e reflexão em relação as demandas reivindicadas nesses movimentos de rua. Exatamente nesse ponto trago o conceito de efeito manada ou comportamento de rebanho. Esta é uma disposição natural do ser humano, quando age em bando, de ter sua conduta alterada. Atualmente, a capacidade de fazer reflexões e investigações complexas é prejudicada por causa dos incessantes bombardeios de informações com viés de confirmação, potencializadas pelos algoritmos, que pessoas recebem diariamente em todas as bolhas digitais.
A clássica discussão da psicologia das massas, ramo da psicologia social, que se remetia mais aos encontros presenciais, de grupos, movimentos e sindicatos, acontecem hoje no mundo virtual e desemboca nas ruas, nessas grandes manifestações marcadas por lideranças e sub-lideranças. Gustave Le Bon, em Psicologia das Massas[1], conferia essas ações coletivas como um decréscimo intelectual do ser humano, direcionado, muitas vezes, por um líder ou chefe visto como alguém superior pelos seus seguidores. Essas pessoas seriam privadas de racionalidade, e, portanto, incapazes de serem livres e autônomas. Nesse sentido, o fenômeno do contágio teria essa capacidade psíquica de destituir as individualidades, levando-as a agir de maneira irresponsável e impulsiva, sob risco de gerar violências. Vide o que foi as tentativas golpistas do 8 de janeiro de 2023 no Brasil, ou mesmo a recente escalada brutal de mortes e depredações no Nepal, que derrubou o primeiro-ministro KP Sharma Oli.
Já em Freud, na obra Psicologia das Massas e Análise do Eu[2], há sempre uma idealização do líder sobre o liderado, pois o mesmo enxerga o superior como alguém que representa o seu ego, por isso a submissão e crença absoluta na sua superioridade. Não há argumentação lógica capaz de fazê-la mudar suas opiniões. Até mesmo seu inconsciente, seu id, fica descontrolado, pois não há mais filtros para impedir ações impulsivas, reprimidas. O diálogo com o diferente já perdeu sentido. O chefe tem o poder de impulsionar para fora repressões e medos contidos nos seus seguidores. Esse é o incrível poder. “Se odeio políticos tradicionais, mulheres, gays, nordestinos, ateus, pobres, artistas, intelectuais, juízes, imigrantes, negros, agora tenho alguém que representa a mim e tantas outras pessoas na mesma situação”.
O filosofo alemão, Friedrich Nietzsche, na obra Genealogia da Moral, entende que esse “espírito de rebanho” é uma disposição para os fracos. A citação a seguir é bem elucidativa “Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou”.[3]
No campo da neurociência, o comportamento de rebanho é uma disposição inconsciente, cravada no sistema nervoso, bastante útil ao longo da história humana, sobretudo por causa da necessidade de sobrevivência e reprodução da espécie. É uma necessidade de inclusão de grupo. Vários circuitos neurais, como o córtex e o límbico, foram desenvolvidos na adaptação da vida coletiva. Memórias emocionais ligadas a experiências sociais, percepção social, coesão grupal, habilidades de compreender os pensamentos, sentimentos e emoções dos outros. Isso tudo foi um ganho extraordinário, que turbinou as sinapses da nossa engenharia biológica.[4]
Contudo, em um ambiente de incitação à ameaça de sobrevivência e bem-estar acentuadas, com perigo de reprimir ou colocar em xeque crenças, desejos e valores, criando um clima de insatisfação permanente, nasce um “espírito coletivo” capaz de ameaçar importantes pilares da civilização, como instituições e direitos de vários grupos. E aí o X da questão: por mais que a humanidade tenha desenvolvido capacidades neurais de convivência, herdados geneticamente, podemos ser ensinados e excitados, por discursos e ideologias radicais, a valorizar só quem pensa, vive e sente como nós. E o papel do líder tem um peso relevante, pois é o herói e representante dessas pessoas. O restante não passa de ameaça ao grupo. Exatamente, uma visão tribal vivenciada pelos nossos antepassados, e com razão. Mas, em pleno século da diversidade social, cultural e da globalização não há uma unidade universal de comportamento coletivo, uma coesão social, para usar o termo do sociólogo Émile Durkheim, capaz de dar conta da diversidade.
Em consequência, é mais difícil gerir a diversidade, do ponto de vista da colaboração e comportamentos aceitos coletivamente, do que em uma sociedade com 150 amigos ou íntimos, número ideal da Teoria de Dunbar, antropólogo que chegou na conclusão de que um grupo maior tende a não ser coeso. O cérebro social de Robin Dunbar põe limites à convivência humana, evidenciando a importância do contato face a face. E esse é um grande desafio a civilização atual, pois isso interfere, estruturalmente, na forma como organizamos toda a sociedade, em grandes Estados-nação e com alto grau de diferenças e diversidades socioculturais. E mesmo a internet não substitui, ou melhor, não parece ser capaz de aproximar, qualitativamente, as interações sociais de maneira universal. Pelo contrário, tende a acirrar os grupos e criar seitas.
No final, não é um texto otimista, mas realista sobre as condições atuais das interações sociais e dos grandes movimentos de rua, com viés contestatório e radical. Mas qual é a opinião de vocês? Comentem aí.
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Referências
[1] LE BON, G. Psicologia das massas. Tradução de José Maria Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[2] *FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Coleção Obras Completas de Sigmund Freud, v. 15).
[3] NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. [Zur Genealogie der Moral.] Tradução,
notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.125.
[4] https://tnsustentavel.eco.br/academy/efeito-manada-neurocientista-explica-como-o-cerebro-herdou-esse-comportamento-dos-nossos-antepassados/



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