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O PELOURINHO, PLATÃO, E O INCOSCIENTE DAS CIDADES


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Pensar o Pelourinho a partir de Platão é entrar em um espaço onde a cidade vive como uma psique aberta. Ali, a geografia não é apenas chão: é memória condensada, é sintoma exposto, é corpo marcado. O Pelourinho é um “lugar inconsciente” — não porque está escondido, mas porque insiste, retorna, repete. Lacan diria: o real aparece ali como aquilo que não cessa de não se inscrever.


Platão acreditava que a cidade era o espelho ampliado da alma humana. Se quisermos compreender o justo e o injusto, dizia ele, basta olhar a pólis como um grande sujeito, dividido entre seus desejos, suas virtudes e suas sombras. O Pelourinho encarna exatamente essa dialética platônica: é a parte da cidade onde se revela, sem véus, a fenda entre o ideal e o vivido.

No mito da caverna, os prisioneiros vivem aprisionados às sombras — interpretações que o poder autoriza. O Pelourinho foi, durante séculos, o palco onde não se projetavam sombras, mas onde se projetava a carne: o corpo negro exposto, disciplinado, castigado. A verdade não estava atrás deles, mas sobre eles. Não eram sombras que definiam o real, mas o açoite. No centro da cidade, a caverna se invertia: os prisioneiros estavam à vista de todos, e era a sociedade quem preferia manter-se olhando apenas para suas próprias paredes.


Para a psicanálise, todo trauma insiste no espaço. Ele cria dobras invisíveis. O Pelourinho é uma dessas dobras: uma geografia que porta a violência como inscrição simbólica e imaginária. O corpo negro ali não era apenas punido—era significado pelo Outro. Era transformado em signo racial, em objeto da lei colonial, em cifra do gozo do senhor. É o discurso do mestre concretizado em pedra.


E, paradoxalmente, é nesse mesmo lugar que emerge a força pulsional da resistência. O que foi palco de silenciamento torna-se palco de voz. O que foi lugar de sujeição torna-se lugar de criação. As ladeiras que viram sangue agora viram tambor. A psicanálise chamaria isso de “retorno subversivo do recalcado”: o que foi reprimido volta, mas volta transformado — não como dor pura, mas como desejo de existir.


Platão buscava, na alma justa, a harmonia entre as partes. No Pelourinho, descobrimos que a justiça não é harmonia: é reparação. É o reconhecimento daquilo que a cidade tentou recalcar. E só há cura quando um sujeito pode nomear aquilo que antes era injúria.


Assim, a geografia do Pelourinho nos obriga a entrar na topografia do inconsciente brasileiro: um país que tenta esquecer o que fundou, uma cidade que tenta apagar o que expôs, um corpo que tenta sobreviver ao que foi inscrito nele. E, entretanto, o Pelourinho permanece, como memória viva, como marca, como testemunho. E é justamente por isso que, ali, o Brasil ainda pode, talvez, aprender a não fugir do próprio espelho.



IMAGEM: Wikipedia

6 comentários

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Luiz
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Achei o texto sensível e inteligente, mostra que a cidade também fala sobre quem somos.

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Ana
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

O texto faz refletir sobre como lugares históricos também carregam dores e contradições, não só beleza.

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Letícia
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Leitura profunda, mas ao mesmo tempo envolvente, dá vontade de reler e pensar mais sobre a cidade.

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Tainá
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei da relação com Platão, ajuda a entender como muitas vezes vemos só a aparência das coisas.

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Luana
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Achei interessante essa ideia de que a cidade tem um “inconsciente”, nunca tinha pensado no espaço urbano desse jeito.

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