A mediação da vida pelo uso de smartphones é algo tão naturalizado na última década que a vida parece impossível sem o seu uso. Se vamos fazer uma transação bancária, utilizamos o aplicativo disponível no aparelho; se precisamos de uma consulta médica seja na rede pública de saúde, seja na rede privada, utilizamos de um aplicativo; se vamos procurar o significado de uma palavra no dicionário, utilizamos um aplicativo; não há atividade para qual não exista um aplicativo ou ação correspondente disponível no smartphone.
Entende-se que o “telefone inteligente” tem facilitado a vida cotidiana de modo que podemos ser mais eficazes, rápidos e polivalentes. Aparentemente, tudo pode ser resolvido a partir do seu uso, afinal, o mundo cabe na palma da mão, elevando a enésima potência a metáfora da “aldeia global”.
No entanto, alguns efeitos perversos começam a ser notados, estudados e analisados por profissionais de diferentes áreas do conhecimento, em especial, entre as crianças que estão em fase de formação. Alterações significativas nos processos de aprendizado, desenvolvimento motor e socialização ocorrem em função do assujeitamento dessas crianças e adolescentes aos “telefones inteligentes”.
Dada a nocividade do uso do aparelho para acessar diferentes redes sociais e realizar outras atividades como jogos virtuais, tem havido um debate internacional que também impactou a sociedade brasileira, problematizando o uso de aparelhos celulares no ambiente escolar. Como exemplo de estudo, temos o “Relatório de monitoramento global da educação – Tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, publicado em 2023 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco.
Resultado desse e outros questionamentos relacionados ao uso dos smartphones no ambiente escolar, o Congresso Nacional, no apagar das luzes de 2024, votou o Projeto de Lei n. 4932/2024, de autoria de Alceu Moreira (MDB/RS), e aprovou a proibição do uso pelos estudantes “de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante a aula, o recreio ou intervalos entre as aulas, para todas as etapas da educação básica”[i]. Ainda pendente de sanção pelo Presidente da República, cabe a todos acompanhar se haverá ou não veto, parcial e total da lei e/ou de parte dela.
A comunidade escolar, de modo geral, vê com bons olhos essa proibição, pois, no cotidiano escolar, professores e gestores educacionais reconhecem a batalha inglória travada diariamente para que os estudantes deixem de lado esses aparelhos e concentrem-se nas atividades educacionais. Aqueles que são contrários a essa medida, via de regra, consideram que educação está “ideologizada” e defendem o uso do celular como uma ferramenta para combatê-la.
A despeito de argumentações conspiratórias vindas da extrema-direita, que rejeitam a educação pautada na Ciência e conquistam significativa parcela da sociedade brasileira, sou favorável à restrição do uso em ambiente escolar, pois, longe de colocar as crianças e adolescentes em risco, é a saída para potencializar o processo de ensino-aprendizagem.
No entanto, problematizamos de maneira limitada a alguns grupos e indivíduos a relação perniciosa entre a utilização das tecnologias informacionais no mundo do trabalho e suas consequências sociais e subjetivas. Com bastante frequência, não nos preocupamos com as consequências que o uso de todos aparelhos e parafernálias eletrônicas e informacionais que inundam nossa vida têm para os adultos. Damos por certo o seu uso e qualificamos como antigos e antiquados os que ainda resistem, de maneira solitária, a se inserirem nas regras da vida digital. Uberização e plataformização têm criado outras formas de exploração do trabalho bem como sua precarização. Ansiedade, depressão e outras doenças mentais estão associadas a esse novo momento experienciado que, socialmente, tratamos como algo inevitável e para o qual a medicação adequada é a saída.
Pondero com os leitores que ainda estamos muito aquém de uma discussão profunda sobre as tecnologias informacionais e comunicacionais que nos permitam revelar as contradições do seu uso bem como seus determinantes sociais. A infância e a adolescência, tomados como um momento de formação e ao mesmo tempo de vulnerabilidade, precisam ser resguardadas pelos adultos e o Estado, a legislação que restringe o uso dos aparelhos eletrônicos e informacionais no espaço escolar vem ao encontro dessa responsabilidade. Mas, será que de alguma forma não estamos secando gelo?
Os adultos, referência dos estudantes, continuarão com os smartphones como extensão de suas mãos, resolvendo questões do dia a dia, trabalhando e descansando (não posso deixar de lembrar que estamos num momento da história que nossos instrumentos de trabalho são os mesmos do momento de lazer e descanso). O mundo mágico da imagem em movimento e de acesso rápido à “aldeia global” continuará a encantar adultos e crianças. Os algoritmos continuarão a nos direcionar informações, de acordo com os padrões apreendidos de nosso comportamento virtual, limitando, inclusive, nossa compreensão de mundo.
A medida tomada pelo Congresso Nacional é bem-vinda, é importante relembrar. Mas, precisamos aprofundar e muito. Precisamos debater coletivamente que são essas mesmas tecnologias contidas nos smartphones conjuntamente com a necessidade insaciável de produção de mercadorias que efetivamente coloca a vida na Terra em xeque.
A vida humana não é fragmentada para que possamos com medidas isoladas alterar de maneira significativa sua organização. É preciso compreender o mundo em que vivemos e instrumentos para tal nós já possuímos, esse é o principal objetivo do pensamento científico. Dada a centralidade das tecnologias informacionais e comunicacionais, as formas de sociabilidade como um todo precisam ser questionadas, debatidas e desnaturalizadas para serem transformadas.
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Fonte da imagem: Fonte: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoa-smartphone-jogando-escola-8617807/
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