OFF THE KING THE POWER
- Everton Nery
- 28 de mai.
- 4 min de leitura

Na contemporaneidade religiosa, marcada por expressões carismáticas, mídias digitais e culto à personalidade, a figura do profeta autodeclarado ressurge com força. Partimos do caso de um jovem chamado Miguel, que em um culto cristão pronunciou frases de suposta glossolalia, identificadas depois como inglês, com conteúdo altamente simbólico e ambíguo. A fala, traduzida como “desligado o Rei, o poder demandou o bastardo, o Rei, a fada, ficou louco”, desperta inquietações teológicas, psicológicas e sociais. Estaria ele falando sob inspiração divina ou encenando uma subjetividade inflada sob a estética do sagrado? O que se apresenta não é necessariamente uma revelação divina, mas um sintoma cultural e subjetivo de uma estrutura de desejo, poder e linguagem.
A estrutura da fala é reveladora: “o rei desligado”, “o bastardo demandado”, “o rei enlouquecido”. Aqui, temos não um conteúdo teológico consistente, mas uma colagem simbólica que se aproxima mais do delírio ou da encenação do poder pela linguagem. Essa narrativa fragmentada e grandiosa carrega o tom apocalíptico típico das seitas, onde a linguagem já não serve para iluminar, mas para subjugar, confundir e impressionar, pois a linguagem religiosa, quando manipulada por um suposto profeta que se autoproclama mensageiro do divino, corre o risco de se tornar teatralização narcísica do eu, um delírio messiânico que se traveste de transcendência para validar a própria autoridade. A auto intitulação profética, em muitos casos, não é vocação, mas performance do ego, revelando um eu inflado que se oculta sob o nome de Deus.
Paul Ricoeur cunhou a expressão “hermenêutica da suspeita” para designar um tipo de interpretação que não se satisfaz com o enunciado aparente, mas investiga seus bastidores, seus interesses, suas pulsões, seus jogos de poder. Para ele precisamos olhar por trás do discurso, revelando que muitas vezes o que se apresenta como verdade é ideologia, vontade de poder ou sublimação do inconsciente. Aplicando tal hermenêutica à fala de Miguel, somos levados a interrogar: Quem fala quando diz falar em nome de Deus? De onde vem essa palavra, e a que desejo ela serve?
Ao se autoproclamar profeta, Miguel não se inscreve na tradição profética bíblica marcada por dor, resistência e desconforto. Os verdadeiros profetas, como Jeremias ou Amós, falam apesar de si mesmos, muitas vezes sob sofrimento e rejeição. Já o falso profeta, no dizer de Walter Brueggemann, fala para agradar, para se destacar, para pertencer ao poder. Nesse sentido, a fala de Miguel pode ser lida como uma performance narcísica, em que o “profeta” ocupa o centro do culto não por vocação, mas por desejo de reconhecimento. O uso enigmático de frases como “o rei foi desligado” ou “o bastardo foi demandado” constrói uma aura de mistério que, em vez de iluminar, obscurece, ou seja, aquilo que é aceito como verdadeiro não pelo que é, mas por quem diz, como diz e com quais efeitos.
Essa fala de Miguel pode ser lida como uma prática de poder por meio da enunciação profética, onde o jovem assume um lugar de autoridade simbólica para legitimar sua voz entre os fiéis, não por meio do argumento, da escuta ou da experiência, mas por meio do impacto e da performance. É a substituição da ética da escuta pela estética do espetáculo. Em tempos de crise, o discurso religioso pode se tornar o ópio do povo, ou ainda, o delírio das massas desesperadas por sentido. O falso profeta, nesse contexto, não é uma exceção, mas um sintoma social, a expressão da falta, da angústia coletiva, da busca por uma liderança.
O que se ouve da boca desse jovem não é, necessariamente, a voz de Deus. É preciso cuidado com os ventríloquos do sagrado. O verdadeiro profeta, na tradição bíblica, não se autoproclama: ele é muitas vezes relutante, desconfortável, dilacerado. Já o falso profeta grita, performa, exige atenção. Entre o delírio e o discernimento, entre o ego inflado e o silêncio de Deus, cabe à comunidade, e à razão crítica, o exercício do juízo.
É preciso se denunciar as formas em que a religião se transforma em instrumento de controle. A fala desse jovem, com sua estrutura apocalíptica invertida, pode ser entendida como encenação de uma vontade de poder travestida de revelação, em que o “rei” é destronado, o “bastardo” assume o trono e tudo termina em “loucura”. Percebe-se aqui a sublimação de conflitos internos, talvez desejos inconscientes de “matar o pai” simbólico, de desafiar a autoridade e reescrever a própria genealogia. A presença da palavra “fada”, ambígua e dissonante no campo da teologia cristã tradicional, indica a possibilidade de um imaginário fragmentado, talvez atravessado por elementos culturais diversos, sem discernimento doutrinário ou crítico.
O discurso religioso tem o poder de fundar mundos, mas também de criar delírios. A mistura entre fé e fantasia, sem critério teológico ou discernimento comunitário, pode resultar na idolatria do próprio discurso. Miguel, nesse caso, não fala com Deus, mas fala como se fosse Deus, deslocando o sagrado para o espetáculo, e a comunhão para a performance de si.
O que se apresenta como profecia pode ser delírio. O que é dito em nome de Deus pode ser apenas barulho do ego. Em tempos de discursos inflados, de cultos midiatizados e de espiritualidades sem fundamento, a hermenêutica da suspeita é não apenas legítima, mas necessária, pois a comunidade da fé deve aprender novamente a discernir os espíritos, como ensina Paulo em 1 João 4:1: “Amados, não creiais a todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus; porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo.” Entre o bastardo que profetiza e o silêncio que revela, talvez seja tempo de escutar menos os gritos do púlpito e mais os clamores silenciosos da verdade.
Um xêro no coração!
Referências
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. São Paulo: Imago, 1996.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. São Paulo: Loyola, 1999.
BRUEGGEMANN, Walter. A imaginação profética. São Paulo: Fonte Editorial, 2016.
A Bíblia Sagrada.
IMAGEM: Brasil Paralelo
Esse texto faz uma crítica embasada, ao uso exagerado e performático da religião como palco para o ego. A fala enigmática do jovem Miguel é usada como exemplo de como, hoje em dia, nem tudo que parece profecia é de fato inspiração divina — às vezes, é só carência de atenção vestida de sagrado. Deslocando o sagrado para o espetáculo, e a comunhão para a performance de si. Portanto, deve ter cuidado com os falsos profetas.
O texto questiona a autenticidade de discursos proféticos na atualidade, sugerindo que, muitas vezes, são expressões de ego e desejo de poder, não de inspiração divina. Defende o uso da crítica e do discernimento para separar verdadeira profecia de performance.
Esse texto traz uma análise crítica e bem fundamentada sobre a figura do falso profeta na contemporaneidade religiosa. A linguagem mais clara torna a leitura interessante, mesmo para quem não é especialista no assunto. Acho que o texto consegue transmitir uma reflexão importante sobre o poder, a manipulação e a necessidade de discernimento na fé.
O texto reflete sobre como certos discursos religiosos se tornam performances de poder e vaidade, distantes da verdadeira espiritualidade. Amparado na “hermenêutica da suspeita”, alerta sobre a importância do discernimento para não confundir delírios do ego com voz de Deus.
Um texto mais que necessário para que não só a comunidade religiosa mas também o publico geral tome consciência e vejam que muitos que proclamam o nome de Deus não passam de falsos profetas, falsos cristãos desviando os do verdadeiro foco.