OS ADORADORES DE MOLOQUE: A Adultização da Infância
- Armando Januário

- 25 de ago.
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Existe um nome ancestral, ainda hoje, envolto nas esferas do poder. Também denominado Meleque, o culto a Moloque é frequentemente vinculado ao sacrifício de crianças. Sua origem carece de precisão, contudo, as pesquisas arqueológicas encontram ligação entre essa divindade e Baal, deus-sol adorado pelos Povos Levantinos. Esse termo, derivado de Levante, encontra no francês seu equivalente, levant, apontando para onde o sol se levanta, o local do seu nascimento. Trata-se, pois, de uma extensa área geográfica, abrangendo, no oeste, o Oriente Médio, passando pela porção sul dos Montes Tauro até o Mediterrâneo e a leste, o Deserto da Arábia setentrional e a Mesopotâmia. Na atualidade, o Levante é formado pela Síria, Jordânia, Israel, Palestina, Líbano e Chipre, com partes da Turquia, Iraque, Arábia Saudita e Egito.
Moloque deriva do hebraico מֹלֶךְ, “rei”. Quando da escrita bíblica, houve deturpação em sua etimologia, com a pronúncia do termo original Melek, misturada às vogais da palavra boshet, vergonha, ganhasse a pronúncia Molek. A adulteração realizada pelos hebreus tinha o objetivo de achincalhar o deus cananeu, referindo-se a suposta vergonha de sacrificar seres humanos, sobretudo, crianças, em sua celebração. A despeito da similaridade com moleque, vocábulo da língua portuguesa, não há aqui qualquer vínculo etimológico: enquanto Molek se origina do hebraico, moleque está situado no quimbundo, língua da família banta falada pelos ambundos, em Angola.
Antropomórfico, Moloque é retratado com cabeça de touro, mãos estendidas e o ventre em chamas, prontas a consumir crianças, para, em troca, conceder fertilidade, cura de doenças, vitória em guerras e colheita próspera. Diferente de outras deidades, que exigiam ofertas simbólicas, como incenso, a devoção a esta entidade demandava urgência e era instituída por vários reinos. Longe de ser algo feito às escondidas, as oferendas à Moloque constituíam um ato de fé promovido por diversas nações, como o povo amonita, em Canaã, com cerimônia realizada no Vale de Hinom, a sudoeste de Jerusalém. Estamos falando de uma veneração desenvolvida por políticas públicas, com local definido e objetivo claro: consumir crianças – símbolos do futuro – no fogo, abrindo mão do amanhã, na crença imediatista de sobreviver hoje, em um mundo que enfrentava radicais transformações, a partir de guerras constantes.
O psiquismo subjacente no rito a Moloque – consumir o futuro para extrair o máximo do presente – estabeleceu um padrão psicológico enraizado na época atual. A escala de medida do valor humano continua sendo o quanto – ou quem – se está disposto a sacrificar, em uma espiral de violência repetida, invisível e institucionalizada. Essa repetição entorpece os sentidos, levando a maioria da população a normalizar violações de princípios civilizatórios básicos contra grupos vulneráveis. Não é mais preciso levantar altares ao “rei”, tampouco oferecer crianças ao fogo que brota de seu ventre.
Quando as redes ainda engatinhavam, com o Classmates.com, em 1995 e o SixDegrees.com, em 1997, podíamos ver Moloque pela TV, dançando nas coreografias sugestivas, através dos corpos – hipersexualizados – de crianças. Meninas usando maquiagem, salto e minissaia, dançavam “na boquinha da garrafa”. Apesar do enfrentamento a esse estado de exploração, violência e abuso, através de legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990, Moloque prosseguiu. Diversos grupos musicais utilizaram crianças para manipular famílias inteiras, fomentando o consumo e atropelando a infância. Os altares transformados em palcos, os tambores para abafar os gritos entre as labaredas tornados ritmos sensuais e os pais, na Antiguidade, fervorosos, seguiam agora com o mesmo ímpeto, batendo palmas e sorrindo, passivos, vendo suas crianças dançando em oferta à Moloque. Com o passar das décadas, a repetição desse ritual, embora não tenha esgotado o prazer fálico – vinculado à função sexual –, trouxe prejuízos emocionais e físicos para crianças, mas, também para adultos. Ao longo dos anos 1990 e na primeira década de 2000, sucessivas críticas às letras de duplo sentido e os acidentes com garrafas estampavam jornais. Moloque, então, percebeu o esgotamento do significado pela mediação da linguagem. Aos poucos, se retirou desse cenário, planejando algo mais sutil e atrativo.
Com a Revolução Industrial 4.0, a hipersexualização dos corpos nas prateleiras das plataformas digitais contribuiu para a reinvenção do “rei”. Elevado a posição de deus-algoritmo, Moloque arrasta milhões nas redes. Recentemente, o pastor mirim of the king the power demand the best the king the fair and the smart fez sucesso nas redes. Contudo, o Conselho Tutelar do Rio de Janeiro proibiu o adolescente de 14 anos de seguir em suas pregações, obrigando-o a retornar às aulas presenciais. Entretanto, Moloque adentrou às igrejas antes disso: no Brasil, pelo menos desde o início dos anos 2000, o suposto deus dos cananeus utiliza crianças como pastores mirins.
Ainda assim, crianças e adolescentes seguem monetizando nas redes, os novos altares à Moloque. Sem qualquer restrição dos pais, grupos planejam festas clandestinas pela web para consumir vape. Em paralelo, são atraídos por influenciadores, também crianças e adolescentes, para apostar – e perder – em jogos online. Nesse meio tempo, assistimos a viralização de apostas para além do dinheiro: games sexuais, como a “roleta russo do sexo”, incentivam adolescentes para, no final de festas clandestinas – regadas a álcool, outras drogas e sem qualquer supervisão dos pais – a jogar com o perigo de ISTs/AIDS e gravidez indesejada. Nesses encontros, meninos se sentam com o pênis ereto, e, em seguida, meninas circulam, sentando sobre eles. A prática, registrada em abril deste ano, após uma menina de 13 anos engravidar, já ocorria desde fins dos anos 1990 em bailes funk. Pelo visto, parece que a sociedade encontrou mais uma forma de sacrificar crianças à Moloque.
Longe de pensar essa realidade como um cenário apocalíptico, deve-se refletir sobre o modelo de infância pretendido. A pós-modernidade encaixotou a vida nos aplicativos. As redes e a Inteligência Artificial (IA) conquistam milhões todos os dias. Nesses termos, a infância – em tese, o tempo de estruturação da psique do sujeito, através de processos complexos – vem sendo atravessada pelo apagão das funções parentais. Em uma simples metáfora, a sociedade é um carro guiado por crianças e adolescentes, com pais e todo o ordenamento jurídico e político no banco de trás. Paradoxalmente, vemos adolescentes de 40 anos – exemplo disso são homens que convidam mulheres para sair e por não terem desfrutado de qualquer intimidade sexual com elas, exigem que as mesmas paguem a conta, esquecendo o sábio provérbio “quem convida, dá banquete” – e crianças adultas, caminhando pela geografia do desejo do outro, preenchendo a falta do inconsciente adulto, para satisfazer as suas fantasias. Neste respeito, não deve surpreender a constante demonização da palavra gênero por lideranças religiosas e a obstaculização do ensino de Educação Sexual nas escolas, promovida por figuras do movimento evangélico cristofascista no parlamento brasileiro. Ora, distante de uma proteção às crianças e adolescentes, esse movimento visa encobrir casos de pedofilia em centros religiosos. A Bancada Evangélica, serva de Moloque, sabe que o conhecimento sobre o próprio corpo resultará em inúmeras denúncias contra predadores sexuais existentes em seu próprio meio. Por sua vez, mesmo as agremiações religiosas as quais não compõem a bolha evangélica, se beneficiam desse encobrimento e prosseguem ofertando crianças a Moloque, sem qualquer indício de mudança de comportamento.
Reconhecer a irresponsabilidade parental pode representar o início das mudanças. Fazer isso é encarar a própria falta de equilíbrio em não sustentar os limites simbólicos entre infância e adultez. Uma criança jamais deve ser induzida a resolver as querelas afetivas dos pais. Tal violação antecipa as fases do psicodesenvolvimento, impondo desafios imensos na construção identitária. Em contrapartida, proporcionar um ambiente – real e virtual –, no qual brincar esteja na programação, propõe a construção positiva da infância. Crianças e adolescentes precisam ser cuidados e não ser cuidadores prematuros. Desde cedo, precisam ser amados e aprender a amar. Necessitam de uma educação crítica, capaz de fornecer instrumentos adequados para tirar lições valiosas dos próprios erros. Demandam conhecer formas de combate ao bullying e ser educados a partir de uma perspectiva antirracista, indo ao encontro do pleno exercício da cidadania. Devem conhecer a perversidade do patriarcado, da tecnologia machista e da misoginia enquanto mecanismos perversos de controle sobre os corpos, a serviço de Moloque.
A violência simbólica materializada na imposição de uma vida adulta para as crianças é mais uma comprovação do fracasso inerente aos avanços tecnológicos sem letramento digital. Proteger crianças e adolescentes é função da família, da sociedade e do Estado. Ao invés de se colocar a serviço de Moloque, cabe ao poder público regular as tecnologias, fomentando uma cultura de delimitação daquilo que pode ser acessado por crianças. Essa proteção, contempla a noção de humanismo em sua integralidade: um mundo no qual o respeito ocorra, tanto em âmbito presencial, quanto virtual.
Todavia, Moloque requer mais atenção. Acima de um deus consumidor de crianças, ele é um conceito de sacrifício em troca de êxito, de dor para atingir o sucesso, de cansaço para acessar a glória. Falaremos sobre isso em breve...
FONTES:
IMAGEM: Portal Bemdito



Texto bem interessante e necessário!