“PLURALIDADE” E AS BATIDAS DA RESISTÊNCIA: Quando o Pagode fala da Bala, do Corpo, e da Favela
- Nieissa Pereira
- 21 de set.
- 3 min de leitura

Na última semana, o público baiano foi surpreendido com a notícia do retorno de Ed City aos vocais da banda Fantasmão, que se prepara para celebrar seus 20 anos de trajetória. Fundado em Salvador, em 2006, pelo próprio Ed City em parceria com o empresário Franco Daniele, o grupo surgiu com a proposta de renovar a cena musical baiana. Desde os primeiros passos, apostou no chamado “groove arrastado”, uma sonoridade marcada pela fusão de samba, pagode, reggae, rock e rap/hip hop, rompendo com a tradição do cavaquinho e incorporando o DJ como elemento central das apresentações.
O álbum Pluralidade, lançado pela banda Fantasmão, é mais do que um conjunto de músicas destinadas ao entretenimento: é uma verdadeira crônica da cidade, um manifesto cultural que transforma dor em batida e marginalização em potência. O que se ouve nas faixas é a pluralidade da periferia de Salvador, que resiste ao estigma histórico e ao olhar colonizador que sempre a associou ao perigo e ao crime. O pagode baiano, desde sua origem, enfrenta o peso de ser chamado de “som de bandido”, uma expressão carregada de preconceito racial e social que escancara a forma como o Brasil lida com as expressões culturais negras. Atribuir ao pagode esse estigma é negar sua dimensão artística e política, reduzindo-o a ruído e ameaça, quando na verdade ele traduz, em ritmo e corpo, a complexidade da experiência periférica.
Ao contrário de gêneros musicais que, quando atravessados por processos de embranquecimento, ganham legitimidade cultural e comercial, o pagode de quebrada permanece constantemente vigiado e criminalizado. É o que Stuart Hall chamava de mecanismo de controle cultural: a sociedade dominante decide quais expressões negras podem ser incorporadas como “nacionais” e quais devem ser marginalizadas. Essa marginalização não ocorre porque o pagode seria “menos música”, mas porque ele é música de corpos negros, jovens e periféricos que ousam ocupar o espaço público com suas danças, seus gritos e sua estética própria.
Pluralidade responde a esse processo de forma radical. As letras falam da violência policial, da vida diante da bala e do orgulho de ser de onde se é. A batida é pesada, mas não apenas para animar a festa: ela é um instrumento de denúncia, uma forma de dizer que a favela resiste e cria, mesmo quando a cidade insiste em tratá-la como descartável. O corpo que dança no pagode é, nesse sentido, um corpo político, que se recusa a permanecer imóvel diante da repressão. Como lembra Sueli Carneiro, o corpo negro carrega tanto as marcas da violência histórica quanto a potência da invenção. Dançar no gueto, nesse contexto, é um gesto de sobrevivência, é recusar o disciplinamento que o Estado e a sociedade buscam impor.
O álbum também revela a pluralidade das vozes periféricas. Não há apenas denúncia, há também celebração, afeto, festa, desejo. O pagode, como a literatura marginal, mostra que a periferia não pode ser reduzida a um único estereótipo. Da mesma forma que Ferréz, Sérgio Vaz e Sacolinha escreveram a favela em papel, o Fantasmão escreve a favela em ritmo e dança, dando à quebrada o direito de narrar a si mesma. Essa pluralidade é fundamental, porque desmonta a lógica colonial que insiste em homogeneizar os sujeitos periféricos como se fossem apenas vítimas ou apenas criminosos.
Ouvir Pluralidade é, portanto, muito mais do que se deixar levar pela batida contagiante. É entrar em contato com uma memória coletiva que denuncia a violência e ao mesmo tempo celebra a vida. É perceber que a favela não é apenas espaço de carência, mas de invenção, de beleza e de dignidade. O álbum se apresenta como documento social, como arquivo vivo de uma experiência que o Estado e a mídia muitas vezes tentam silenciar. Ao ecoar das caixas de som da quebrada, o pagode baiano se torna literatura marginal dançante, poesia em movimento, resistência estética.
No fundo, Pluralidade nos lembra que a favela é múltipla e que sua música é, antes de tudo, afirmação de existência. Quando a cidade insiste em associar o gueto à bala, o Fantasmão responde com batida. Quando querem impor o silêncio, a periferia responde com som. Essa pluralidade é o que nos resta de mais potente: é memória, é luta e é resistência que não se cala.
REFERÊNCIAS:
G1. EdCity anuncia retorno aos vocais do Fantasmão após 15 anos. G1 Bahia, Salvador, 16 set. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/musica/noticia/2025/09/16/edcity-anuncia-retorno-aos-vocais-do-fantasmao-apos-15-anos.ghtml. Acesso em: 19 set. 2025.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 1988.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
VAZ, Sérgio. A poesia dos deuses inferiores. São Paulo: Global, 2005.
FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto, 2000.
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser. São Paulo: Pallas, 2005.
SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador: EDUFBA, 2004.
IMAGEM: Fala Cajazeiras
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