POR MAIS DIAS (IM)PERFEITOS
- Miguel Pereira Filho

- 18 de jul.
- 4 min de leitura

Em tempos nos quais a vida parece cada vez mais subordinada à cadência frenética dos algoritmos das redes sociais, assistir a um filme como Dias Perfeitos demonstra que é possível resistir à lógica dominante das produções audiovisuais contemporâneas, bem como à própria lógica civilizacional moldada pelo culto à produtividade, ao excesso de positividade e à constante aceleração que nos condiciona a pensar que tudo precisa estar explícito; tudo precisa ser para ontem.
E, com uma ação quase sonâmbula diante do mais simples dos gestos, o sr. Hirayama, protagonista da obra do cineasta alemão Wim Wenders, não oferece essa resistência com palavras, tampouco com discursos. Sua rebelião é silenciosa, singela, porém não menos impactante: sua estética é a do gesto, não da explosão narrativa que inunda o espectador com diálogos que beiram à infantilização. Trata-se de uma figura estoica, ainda que sem a tragicidade de um Epicteto — mais próxima, talvez, do Bartleby de Melville, sobre o qual Byung-Chul Han se debruça em sua crítica à sociedade do desempenho. Aliás, a apatia de Bartleby está muito mais próxima da ação quase voyeurística da vida apresentada por Meursault, protagonista do romance O Estrangeiro, de Albert Camus. Mas isso é outra história.
A ação de limpeza dos banheiros públicos em Tóquio por Hirayama — um ofício comumente considerado invisível, quase escatológico para os olhos modernos — é transformada em atos precisos, meticulosos, como quem faz daquela tarefa um sentido da existência. Seja na limpeza dos banheiros, seja no cuidado com suas mudas de árvores, nosso protagonista parece encarnar um ethos semelhante ao que o sociólogo Richard Sennett chamou de artesanal, aquele que "deseja fazer alguma coisa bem pelo simples prazer da coisa benfeita". E é nessa manifestação radical de dignidade que se encontra a beleza da personagem: alguém que não trabalha por status, muito menos vê sua ação como desonrosa; trabalha como quem cuida, como quem medita. Em meio à histeria da performance que assola as redes sociais, o sr. Hirayama cultiva a repetição cuidadosa e paciente como exercício próprio da liberdade.
Byung-Chul Han observa que vivemos sob a tirania da positividade, que se transforma em masmorras mentais para uma vida que só se consuma no excesso. Depressão, burnout, ansiedade — tudo isso seriam, segundo ele, efeitos do excesso de estímulo, de conexão, de possibilidades. A subjetividade, como nota o autor, tornou-se empresa de si mesma. Nesse cenário, a vida de Hirayama não apenas destoa — ela parece impossível. E essa recusa aos excessos transparece no filme a partir da sensação de que nosso protagonista vive em descompasso, quase em um mundo à parte, ainda que esteja imerso na hiper-modernidade japonesa. Sua relação com os objetos — plantas, fitas cassete (pra quem é da geração Z, “dá um Google” que vocês saberão o que é), livros — é cuidadosa, onde nada se pretende extrair além do necessário. Estamos, nesse sentido, diante de um estoicismo cotidiano, no qual a liberdade é autocontrole diante das facilidades tecnológicas. O protagonista não busca mudar o mundo, mas ajustar-se a ele, como quem se senta delicadamente em um banco num bosque para admirar a copa das árvores.
Entre todas as imagens recorrentes presentes no filme, as árvores chamam mais atenção. Ele as fotografa cotidianamente, quase como quem faz um inventário da impermanência da natureza. As árvores, que mudam lentamente de estação em estação, são metáforas vivas de uma vida enraizada, paciente, que cresce em silêncio. Se a modernidade exige frutos imediatos — ou mesmo frutos que naturalmente não podem ser alcançados —, as árvores do filme pedem apenas presença e um olhar atento.
Aliás, o filme obedece a uma estética filosófica da natureza: cada cena, cada take, é como um ramo que, partindo do tronco, segue seu caminho, retorcendo-se sem sobressaltos. Não há grandes viradas, não há cenas épicas, apenas o devir da vida das personagens que, ao existir, obedecem ao ciclo natural das coisas. A fotografia é generosa, não se pretende invasiva, e corrobora para que o fluxo calmo permita uma fluidez semelhante ao rio de Tóquio que, acossado pela grande megalópole, corre em direção ao pôr do sol contemplado por Hirayama e sua sobrinha, numa cena em que ambos conjecturam planos para o futuro.
Metaforicamente, o filme pode ser visto como um kintsugi das emoções: em vez da reparação de peças cerâmicas quebradas com ouro, Hirayama age amalgamando fragmentos de seu passado (que ressurge de maneira pungente) e de seu presente, onde os dramas alheios oferecem ao protagonista a possibilidade de compreender seu próprio lugar no mundo. E não há ocultação, muito pelo contrário. A sutileza com que o passado ressurge é elegante, porque demonstra sua disposição não de apagá-lo, mas de absorvê-lo nesse mosaico imperfeito. Aliás, é com o sr. Hirayama que entendemos que perdoar não é esquecer. Não importa o que tenha acontecido — as marcas do que vivemos, ou melhor, as rachaduras feitas pela vida, se manterão presentes. O que importa, no fim das contas, é se faremos disso o artesanato da nossa vida, colando-as pacientemente com o brilho que só a clareza da experiência nos traz, ou se vamos utilizar esses casos para ferir os outros e a nós mesmos. E, ao que parece, o sr. Hirayama fez sua escolha.
Contra a pressa, a pausa. Contra a performance, o ritual. Contra o ruído, o silêncio. Wenders e Han nos entregam um excelente antídoto para o mundo em que vivemos. Aliás, minha indicação não é que vejam Dias Perfeitos, mas que o contemplem. E talvez seja exatamente isso o que nos falta — não mais informação, nem mais estímulo, mas o reaprendizado da lentidão como virtude fundamental de uma vida boa, seja ela qual for.
Referências Bibliográficas
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2019.
WENDERS, Wim (Dir.). Dias Perfeitos [Perfect Days]. Japão/Alemanha: Koji Yanai/Wim Wenders, 2023. Filme.



Análise interessante e profunda!