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POR QUE MARX ODIARIA O SHOW DE MADONNA?

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho


Antes que comecem as caçadas, e as voadoras metafóricas em meu peito metafórico, eu preciso dizer algo aqui, logo nessas primeiras linhas que escorrem dos meus dedos: o show foi ótimo, muito impressionante, como é de se esperar de uma diva do Pop. Eu admiro Madonna? Sim, muito, mas esse não é o assunto do nosso ensaio de hoje. Por mais pontos em comum entre as duas esferas, arte e política seguem caminhos diferentes. Eu sei que é difícil de entender, em especial nesse mundo identitário onde qualquer coisa é um pretexto de autoafirmação (da comida na sua mesa até a igreja frequentada, passando por suas roupas, perfumes, cabelo e praias). Mas eu posso sim admirar uma música (filme, pintura, show) sem necessariamente digerir a mensagem política em seus bastidores. Uma pode ser incrível, de uma potência deliciosa, mas a outra estranha, problemática ou até perigosa. Por isso abra bem seus ouvidos e prestem atenção: meus comentários NADA tem a dizer sobre a performance artística de Madonna, muito menos sobre suas músicas. Na verdade, ela foi excelente, divertida e incrível, como sempre foi.  Ou seja, o que te ofereço nessas páginas não é um julgamento estético, mas apenas político do que aconteceu, por isso conto com sua preciosa compreensão.


No dia 04 de maio o Brasil parou, os pássaros desistiram dos seus voos, as cachoeiras seguraram um pouco seus fluxos de água, e até o sistema solar inteiro permaneceu ansioso pelo que se aproximava no horizonte. Naquele dia, ela aterrissou no Aeroporto do Galeão, meus companheiros, a rainha do POP, a estrela das estrelas, a diva das divas, a referência de milhões lá fora. Tão perto, não é? É possível até sentir o seu coração bombeando sangue até sua genitália, um tipo de orgasmo em cada fibra desse seu corpo. Mas não se enganem... ela não chegou sozinha, mas acompanhada de uma caravana de esquerdistas liberais, incluindo Annita, Pabblo Vittar e muitas outras.


Depois do fracasso dos velhos movimentos de esquerda, como marxistas e anarquistas, assim como de suas estratégias clássicas de resistência, novos grupos apareceram no cenário político, carregando outras alternativas, além de outros adversários, assim como um pacote inédito de valores. Desde a década de 60, com sua bagagem pós-estrutural escancarada, numa mistura curiosa de Foucault, Deleuze e PSOL, a foice e o martelo perderam seus brilhos, se tornaram foscos... cegos. Diante desse fracasso, muitas figuras pós-estruturantes venderam a ideia do “corpo” (o sexo, os fluidos, o desejo) como a nova ferramenta revolucionária na prateleira do progressismo contemporâneo, aqui chamado de liberal. Afirmar esse pedaço de matéria transbordante seria um gesto de resistência, uma luta alternativa contra estruturas, sistemas e outros arranjos verticalizados. Fluidos se transformam em armas subversivas dentro de uma nova batalha política e epistêmica, da mesma maneira que experiências se tornam as novas barricadas.


Talvez fizesse sentido lá atrás nas águas de maio de 68, em um capitalismo ainda repressivo e uniformizante, padronizado, como o próprio Adorno descreveu nas décadas de 40. Mas hoje, em pleno século XXI, depois de tantos acontecimentos bizarros ao longo dos anos, o universo capitalista segue por um outro caminho, bem mais estranho. Enquanto instância de dominação, ele não diz mais a você: “reprima, não faça, não seja”. Em outras palavras, ele não segue o percurso de um superego tradicional, aquele freudiano e famoso nas críticas de cursos de humanas e sociais. Muito pelo contrário... ele diz: “goze, faça, seja, mas não esqueça do mais importante: MOSTRE”. Sempre foi previsível associar “poder” com “repressão”, como se fossem sinônimos, nada mais do que gêmeos siameses da mesma mãe democrática. Embora todo aparato repressivo seja uma forma de poder, nem toda forma de poder reprime, muito pelo contrário. Lamento desapontar sua pessoa, meu leitor aleatório favorito, mas não é Édipo o inimigo agora, como era na década de 60, mas Narciso e seu mundo neoliberal de um Eu Soberano.


O principio do complexo de Édipo era a repressão, representada pela figura de um pai castrador, assim como de instituições sufocantes, mas com Narciso é diferente, muito diferente. Sua presença não é repressiva, mas permissiva. O pai enquanto significante não diz: “filho, reprima seus desejos e nunca abandone sua fé. E lembre-se: sexo é apenas procriação”. A mensagem do pai contemporâneo, pelo contrário, segue outro ritmo: “filho, transe, aqui tem uma camisinha e algumas dicas que podem aumentar muito sua performance. Eu faço isso e isso com sua mãe e funciona muito bem. Depois eu quero saber de tudo, cada detalhe, quando e como você gozou”. O primeiro pai é problemático, sem dúvida, mas o segundo não parece mais agradável, apenas uma forma diferente de imperativo, de pressão.


Aos olhos do velho e barbudo Marx, o show foi uma performance conservadora porque ofereceu o corpo como uma arma progressista, como se fosse uma ruptura, uma exceção, quando, na verdade, hoje é a maior das regras. Se você tem Instagram, Tik Tok, Twitter ou Linkedin, sabe exatamente do que estou falando. No meu feed sou bombardeado a cada segundo por criaturas empoderadas, todas afirmando suas escolhas, corpos, viagens, relações, de preferência com alguma dancinha subversiva. Esse processo corporal não é sentido como um gesto livre, apesar do que dizem por aí, mas como uma nova exigência, um novo imperativo, um novo peso em nossas costas: GOZE!!! Disseram na década de 60 que acolher o corpo em toda sua "transbordância" era um passaporte emancipatório, um encontro com a liberdade, mas erraram no diagnóstico ou, talvez, mentiram na nossa cara.


Não é por acaso que os sintomas do século são neuroses como a ansiedade, a depressão, síndromes do pânico. Afinal, indivíduos são expostos a uma rotina super intensa, lançados em um mundo identitário que cobra de cada um de nós 24 horas de investimento, 7 dias por semana de suor, 30 dias por mês de likes. “Ser” nunca foi um verbo tão difícil quanto agora, já que é um processo eterno, constante... cansativo!!! Meu ego não é mais um dado, como sempre foi nos 300.000 anos de nossa espécie, mas sim um produto que pede por visibilidade, investimento e atualizações diárias. Nesse mundo identitário, eu nunca tenho descanso, nem mesmo quando preciso. Minha comida não é uma comida, mas um produto a ser consumido e afirmado. Minha roupa não é uma roupa, mas também um produto. Minha religião não é uma religião, mas uma mercadoria privada como outra qualquer dentro dos limites da minha identidade. Em resumo, tudo serve a ele, tudo se curva às suas determinações, a única instituição ainda viva e poderosa hoje: o INDIVÍDUO com seu eu soberano.


Em outras palavras, o show de Madonna, ao menos enquanto uma mensagem progressista, chegou muito atrasada, sessenta anos de atraso. Esse tipo de progressismo com certeza funcionou lá atrás, com todo seu glamour pós-estrutural, mas hoje não é eficiente, ao menos diante do novo estado do capitalismo contemporâneo e seu superego pós-freudiano. Oferecer o corpo como recurso progressista não tem nada de subversivo, não mais. Por outro lado, qual estratégia devemos assumir diante desse novo campo de circunstâncias? Sendo sincero com você, eu não tenho a mínima ideia, por isso convido os progressistas a pensarem em novas formas de resistência, já que práticas políticas são ferramentas como qualquer outra, ou seja, quando não funcionam mais, trocamos.


REFERÊNCIAS DA IMAGEM:


3 Comments

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Guest
Oct 02, 2024

Mas a Madonna não corroborou Marx em sua letra que diz "'Cause we are living in a material world

And I am a material girl

You know that we are living in a material world

And I am a material girl"?

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Alan Rangel
Alan Rangel
May 06, 2024

@⁨Thiago Pinho⁩ Vamos fazer algumas considerações do texto. Me perdoem os destaques. O texto apresenta boas reflexões, está bem escrito, como sempre, mas já conheço essa discussão, claro, sobre o novo super ego contemporâneos, e por conversar contigo.


"Aos olhos do velho e barbudo Marx, o show foi uma performance conservadora porque ofereceu o corpo como uma arma progressista, como se fosse uma ruptura, uma exceção, quando, na verdade, hoje é a maior das regras". *Marx é materialista, parte da realidade material, diferente do mestre Hegel, que parte do espírito. E o corpo é algo material, não esqueçamos. Show conservador ? E nessa linha você acaba por reforçar que o progressismo atual, no qual Marx supostamente não concordaria , é…


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Thiago Pinho
Thiago Pinho
May 06, 2024
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Valeu pela leitura e comentários, Alan. Vamos lá:


Seu primeiro argumento: "O corpo é um recurso materialista". E quem disse que não? Da mesma forma que Feuerbach era um materialista, os socialistas utópicos também e até os jovens hegelianos também, de certa forma. Dizer que o corpo é materialista não significa uma filiação imediata às ideias de Marx


Seu segundo argumento: "Sua crítica jogou a criança com a água". Eu discordo, porque reconheço no texto a importância da estratégia da esquerda liberal no passado e até um pouco hoje. Mas o ponto é: não precisamos agora de novas estratégias? Observe que não é a mesma coisa dizer: "A estratégia da esquerda liberal não serve, nunca serviu e nunca servirá". Isso…


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