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POR QUE O PROFESSOR E A PROFESSORA DA ESCOLA AINDA INCOMODAM A UNIVERSIDADE?




Eu sou cientista e sou professora. Já tive a oportunidade de lecionar no ensino superior, inclusive como professora substituta na UFBA. No entanto, minha atuação efetiva é como professora da educação básica, na rede estadual da Bahia. E, mesmo sendo pesquisadora, com 19 artigos publicados na minha área e atuando como revisora de periódicos internacionais, percebo que a universidade não gosta do fato de eu ser professora de escola. Não sei exatamente por quê, mas os professores da educação básica ainda parecem incomodar o ensino superior quando buscam carreiras de pesquisa— e precisamos refletir sobre isso.


Trazendo o debate para um contexto acadêmico, as primeiras sementes do docente pesquisador germinaram na Inglaterra, na década de 1960, durante um processo de reforma curricular nas escolas secundárias. Na época, passaram a ser valorizados os saberes contextualizados na realidade dos estudantes e na forma como eles se relacionavam com o meio e com a sociedade. Nessa perspectiva, o professor pesquisador era aquele que desenvolvia pesquisa a partir do contexto de sua própria sala de aula.


Assim, defende-se o papel do educador como pesquisador reflexivo, capaz de produzir conhecimento a partir das situações vividas em sua prática e da reflexão sobre sua ação presente. No entanto, ao investigar mais profundamente essa articulação entre docência e pesquisa, percebo um hiato na literatura quando se trata da atuação científica do docente da educação básica em relação à universidade. Grande parte do que se produz sobre o professor pesquisador ainda se restringe aos saberes do "educar".


Mas eu pergunto: por que o educador não pode também ser pesquisador em outros campos do conhecimento, além de sua prática pedagógica? Por que o professor da educação básica não pode ser também um grande especialista e produtor de conhecimento em sua área de formação? Por que, em vez de esperarmos chegar à universidade para produzir ciência, não construímos um fluxo contínuo de formação e atuação científica desde a escola — em um sistema colaborativo e retroalimentado?


A literatura aponta um ponto de atrito entre o professor pesquisador e o professor acadêmico, sinalizando a necessidade urgente de romper barreiras entre os mundos da educação básica e do ensino superior. Muitas pesquisas indicam que o conhecimento produzido nas universidades tem pouca aderência à realidade escolar. Surge, então, uma das grandes inquietações: se pesquisadores acadêmicos podem investigar sobre a educação básica, por que professores da educação básica não podem, igualmente, desenvolver pesquisa científica junto à universidade?


“Minha questão é que ambos, professores e acadêmicos, percebem as perguntas de investigação um do outro como irrelevantes, apesar de alguns exemplos isolados em que pesquisas de acadêmicos e de professores ultrapassaram a linha que os divide. Na maioria das vezes, tanto os pesquisadores ignoram os professores como os professores ignoram os pesquisadores.”— Zeichner, 1998, p. 207.


O contraponto que trago é que o professor pesquisador pode, sim, ser um pesquisador da educação — se assim desejar —, mas também pode almejar ser um geneticista, um geógrafo especialista em solos, um pesquisador em literatura, um biólogo marinho, um teórico da matemática, um estatístico, um artista, um historiador... Pode mobilizar seus conhecimentos específicos como cientista para enriquecer sua atuação enquanto educador.


Não se pode ignorar que as origens da carreira científica no Brasil estão enraizadas em grupos historicamente privilegiados, de alto poder aquisitivo, e que essa estrutura elitista da pesquisa ainda se mantém. Contudo, toda a sociedade é prejudicada quando a produção de conhecimento permanece concentrada nesses grupos. Não há democracia verdadeira quando a ciência não pode ser feita com — e por — uma diversidade de sujeitos.


O descompasso entre universidade e escola pode ser superado por meio de uma interação harmônica, rompendo com as categorias estanques de “professor acadêmico” e “professor pesquisador”. O que podemos ser, como país, se escolas e universidades forem igualmente reconhecidas como espaços legítimos de produção de conhecimento e de aprendizagem? Quanto poderemos avançar na ciência se os diálogos entre educadores da educação básica e professores universitários forem apenas uma troca entre colegas de profissão? E se, em vez de pesquisar sobre os ecossistemas, sobre as escolas, sobre os docentes e sobre os estudantes, passarmos a pesquisar com os recifes, com as escolas, com os professores e com os estudantes?


Percebo que é exatamente essa busca por cooperação que incomoda. Eu sei que educadoras e educadores da Bahia e do Brasil já estão dando passos importantes na ciência — básica e aplicada. E sei também que muitos professores universitários caminham na contramão da lógica academicista. Isso incomoda, porque essa lógica é sustentada pelo capital: anunciar a nova desgraça, pagar para publicar em revistas de melhor qualis, trabalhar gratuitamente para os grandes periódicos sob o pretexto de "ganhar currículo", ser desvalorizado por não ter o inglês como língua materna, competir com o colega pelo metro quadrado de universidade, criticar para parecer mais inteligente... Tudo isso revela o sistema capitalista de produção científica, um sistema que fere todos os profissionais da ciência — inclusive os que o reproduzem sem perceber.


Aqueles que nadam contra a corrente não têm outro caminho senão incomodar. Então, incomodemos! Vai ter ciência nas escolas, nas ruas, nas praças, debaixo dos cajueiros — e o sistema academicista não conseguirá conter a primavera!


FONTE:


NACARATO, Adair Mendes. A parceria universidade-escola: utopia ou possibilidade de formação continuada no âmbito das políticas públicas? Revista Brasileira de Educação, v. 21, p. 699-716, 2016.


PEREIRA, Elisabeth Monteiro de Aguiar. Professor como pesquisador: o enfoque da pesquisa-ação na prática docente. In: Geraldi, Corinta; Fiorentini, Dario; Pereira, Elisabeth Monteiro de Aguiar (Orgs.). Cartografias do trabalho docente. Editora Mercado de Letras, 1998. p. 153-182.


ZEICHNER, Kenneth M. et al. Para além da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador acadêmico. Cartografias do trabalho docente. Editora Mercado de Letras, p. 207-236, 1998.


IMAGEM: Kaits

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