QUE CIDADE MARAVILHOSA É ESSA? NECROPOLÍTICA E MASSACRE NO RJ
- Manuel Sousa Junior

- 29 de out.
- 6 min de leitura

A cidade do Rio de Janeiro é conhecida internacionalmente como a “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”, como dizem os versos da canção Cidade Maravilhosa, escrita por André Filho em 1935 e entoada como marchinha de carnaval até os dias de hoje.
O dia 28 de outubro de 2025 foi marcado por uma operação policial que resultou em muitas mortes, em um massacre que não tem nada de maravilhoso. Até o fechamento deste artigo, já haviam sido registradas mais de 130 mortes. Para surpresa de alguns e como esperado por outros, o governador bolsonarista do Rio de Janeiro, Cláudio Castro do PL (Partido Liberal), descreveu a operação como um sucesso e, sem apresentar provas, afirmou que as únicas vítimas da chacina foram alguns policiais, que todos os demais eram bandidos. Como pode ser considerada um sucesso uma operação que matou mais de 130 pessoas? As cenas que assistimos, estarrecidos, no conforto de nossos lares, pareciam cenas de guerra, semelhantes às que costumamos ver nos noticiários sobre Gaza ou Ucrânia. Apenas para efeito de comparação, em Gaza, uma região de um país que está em guerra, morreram no mesmo dia 28 de outubro de 2025 um total de 104 pessoas e o famoso massacre do Carandiru contou com 111 mortos em 1992.
Os ultraconservadores/extremadireitistas costumam defender a máxima de que “bandido bom é bandido morto”. No entanto, quem são os chamados bandidos? Em sua maioria, são pessoas pretas e pardas, moradoras das favelas e comunidades do nosso país. Será que aqueles que repetem essa frase também desejam ver mortos os bandidos de colarinho branco? Os criminosos engravatados de Brasília ou da Faria Lima? Esse tipo de pensamento representa um atentado aos Direitos Humanos e à Constituição Federal, visto que, no Brasil, não existe pena de morte. E antes que eu me esqueça: bandido bom é bandido ressocializado! Ou será que acreditam que todos escolhem essa vida por vontade própria? Muitas vezes, é apenas a opção mais viável, mais fácil e até “natural” dentro do contexto em que foram criados.
Necropolítica é um conceito criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe que traz o fazer morrer patrocinado pelo Estado e instituições governamentais, também chamado como Estado da morte. Para pensar este conceito, o filósofo camaronês fez um deslocamento da biopolítica de Michel Foucault para o período colonial e afirmou que a escravidão moderna foi a primeira experiência biopolítica atravessada pela necropolítica, que promoveu um repovoamento do mundo a partir da brutalidade colonizadora no Ocidente.
Nesse conceito, a soberania se expressa predominantemente como o direito de matar. É justamente esse direito de matar que Mbembe relaciona com a escravidão negra no ocidente. Era possível matar sem que causasse uma comoção entre alguns, era possível matar sem que existisse um direito ao luto, era preciso matar alguns para o bem viver de outros. Percebe como esse tema tem uma estreita relação com o massacre do Rio de Janeiro?
O filósofo fala da morte como um espetáculo público. Em um contexto, em que a decapitação é vista como menos humilhante do que o enforcamento, e as inovações nas tecnologias de assassinato visam, não só “civilizar” os caminhos da morte, mas também eliminar um grande número de vítimas em espaço relativamente curto de tempo. Novamente, a relação com a chacina do Rio de Janeiro é inevitável. O espetáculo é tão público, que o governador do Estado atribui o termo “sucesso” como resultado dessa operação letal.
Para Mbembe (2016, p. 131), a vida de um escravo, em muitos aspectos, era uma forma de morte em vida, em que “a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda tripla equivale a dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de modo geral)”. Essa morte, no massacre aqui comentado, extrapola a questão social e vai também para a questão física.
Para o filósofo “o escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em ‘estado de injúria’, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos” (Mbembe, 2016, p. 131). Exatamente como acontece nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro e em todo o país.
Sobre o sistema colonial, Mbembe diz que “as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos - a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da civilização” (Mbembe, 2016, p. 133). O direito soberano de matar não estava sujeito a qualquer regra nas colônias, lá, o soberano poderia matar em qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não era sujeita a normas legais e institucionais. Para o filósofo, “se observarmos a partir da perspectiva da escravidão ou da ocupação colonial, morte e liberdade estão irrevogavelmente entrelaçadas” (Mbembe, 2016, p. 145). Ou seja, as colônias do texto de Mbembe são as favelas atualmente, onde não há regras, onde os Direitos Humanos são negligenciados, onde a morte tem cor e não é branca.
Pois bem, o que vivenciamos no Rio de Janeiro é a manifestação mais visceral da necropolítica. É desonesto e perverso acreditar que na favela existem apenas criminosos. Nas favelas há muitas pessoas trabalhadoras, que resistem diariamente ao terem de lidar, de um lado, com o tráfico e as milícias e, de outro, com o Estado assassino. A favela apenas deseja viver, existir e resistir, mesmo sendo constantemente atacada e exterminada por esse Estado em um contexto necropolítico. Cumpre salientar que sou contra o crime organizado, mas a favor da vida. O Ministério dos Direitos Humanos emitiu uma nota em suas redes sociais afirmando que o crime organizado deve ser combatido com inteligência e com a preservação da vida.
Você percebe essa relação entre a necropolítica e o Estado assassino do Rio de Janeiro? E antes que pense que essa é uma realidade distante, saiba que operações semelhantes ocorrem em todos os estados do país. Quando o Estado age com tanta letalidade nas favelas, qual é o real papel do “monopólio da violência” que lhe é atribuído pela constituição: proteção ou extermínio? Se a favela é apresentada por alguns poderosos como “terreno sem lei”, em que medida essa narrativa justifica, para o Estado, atos de violência massiva que seriam proibidos em comunidades de classe média ou alta? Quando membros de favelas dizem “queremos viver, não queremos morrer”, a quem estão dirigindo esse pedido — ao criminoso, à milícia ou ao Estado que atira? Qual seria a resposta institucional aceitável se 130 pessoas negras morressem numa operação em bairro de classe média? Será que seria tratada como “mera estatística” ou “escândalo nacional”? Se o massacre aconteceu “em nome da ordem pública”, qual é o preço que a ordem pública cobra de vidas humanas — e quem está pagando esse preço? Essas são algumas questões para refletirmos. Deixe sua opinião nos comentários e até o próximo texto!
REFERÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. 269 p. Tradução de: Maria Ermantina Galvão
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petropólis: Vozes, 2014. 302 p. Tradução de Raquel Ramalhete.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, v. 2, p. 122-151, 2016.
SOUSA JUNIOR, Manuel Alves de; LOPES, Henrique Arthur. A necropolítica na história do negro no Brasil: escravidão, pós-abolição e eugenia. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, [S. l.], v. 9, n. 2, p. 143–158, 2024. DOI: 10.62236/missoes.v9i2.84. Disponível em: https://revistamissoeschs.com.br/missoes/article/view/84. Acesso em: 29 out. 2025.
REFERÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. 269 p. Tradução de: Maria Ermantina Galvão
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petropólis: Vozes, 2014. 302 p. Tradução de Raquel Ramalhete.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, v. 2, p. 122-151, 2016.
SOUSA JUNIOR, Manuel Alves de; LOPES, Henrique Arthur. A necropolítica na história do negro no Brasil: escravidão, pós-abolição e eugenia. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, [S. l.], v. 9, n. 2, p. 143–158, 2024. DOI: 10.62236/missoes.v9i2.84. Disponível em: https://revistamissoeschs.com.br/missoes/article/view/84. Acesso em: 29 out. 2025.
Referência da imagem:
ESTADÃO. ‘Ninguém nunca viu o que está acontecendo aqui’, diz moradora em frente à fila de corpos no Rio. 29 out. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/ninguem-nunca-viu-no-brasil-o-que-esta-acontecendo-aqui-diz-moradora-em-frente-a-fila-de-corpos-no-rio-npr/?srsltid=AfmBOor_K0DiJS5C2JgQnKq9W4jgx65pT_3yTJ9qxiBCPi6iNEXxdXMX. Acesso em: 29 out. 2025.



Impossível não pensar no conceito de necropolítica diante de tamanha tragédia patrocinada pelo estado do RJ. E que se estende ao Estado brasileiro. Aqui em Salvador tivemos a chacina do Cabula.
Vivemos o genocídio do povo negro, morador das favelas. É lastamivel que existem pessoas que não se comeveram com esse corredor da morte, que como consequência só irá piorar o tráfico e as milícias. O vimos neste 28 de outubo que ficará marcado na história,foi a espetacularização da morte em troca dos votos dos reacionários e Fascistas.