Por Manhana Castro*
Considero o livro A Mãe de Todas as Perguntas, da escritora Rebecca Solnit, um divisor de águas sobre a importância do feminismo na minha vida. Logo no primeiro capítulo a autora descreve um exemplo de comportamento machista. Tratava-se de um entrevistador britânico que insistia em não mencionar o lançamento do livro dela sobre política e, de forma inconveniente, fazia perguntas voltadas ao fato dela não ter filhos. Segue um trecho desse livro que despertou minha atenção: “A pergunta que o entrevistador me fez foi indecente, pois presumia que as mulheres deveriam ter filhos e que as atividades reprodutoras de uma mulher eram naturalmente um assunto público. Sobretudo, a pergunta pressupunha que, para as mulheres, só existe uma maneira certa de viver”.
Ora, será que se um homem estivesse lançando um livro, o entrevistador iria perguntar sobre o porquê dele não ter filhos? Concordam que o mais importante seria o conteúdo da obra e não a capacidade reprodutiva da autora? Não estou questionando o desejo de algumas pessoas em ter filhos, apenas destaco que esse tipo de pergunta geralmente é direcionado ao gênero feminino. É importante refletirmos sobre discursos, muitas vezes “sutis”, que denotam um comportamento machista.
O direito de escolher não ter filhos é apenas um dos problemas que temos que enfrentar como mulher, dentre tantos, como o feminicídio, salários menores que o dos homens, assédio moral e sexual em ambientes de trabalho, locais públicos, etc. Sofremos pressão social de todos os tipos: a obrigação de sermos mães que não podem falhar nos exaure, porque também somos profissionais, que muitas vezes realizam jornada dupla de trabalho para dar conta das atividades domésticas. Ainda assim, somos julgadas e estigmatizadas apenas por sermos mulheres.
Por que continuamos abordando o assunto feminismo em pleno século XIX? Pasmem! Para algumas correntes o feminismo está superado. A despeito de alguns avanços que conquistamos enquanto mulher, nós ainda vivemos sobre a égide da opressão social, ou seja, sofremos simplesmente pela condição de sermos mulher.
Recentemente, li uma matéria sobre um estupro em um metrô na Cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos. Os passageiros que ali estavam presentes, ao invés de denunciar o crime, simplesmente gravaram com seus celulares o ato criminoso e bárbaro. Não há “modernidade líquida” que explique o comportamento dessas pessoas! É um cenário de horror, distópico, de perda total de humanidade, sensibilidade e empatia com o outro, nesse caso com uma mulher. Um livro do escritor Aldous Huxley ou da escritora Margaret Atwood não daria conta de tamanha banalidade do mal. É a ficção imitando a realidade ou a realidade que é tão tosca que sequer conseguimos conceber em nosso cotidiano?
O movimento feminista surgiu na virada do século XVIII para o XIX, oriundo da Revolução Francesa. Importante mencionar um documento escrito por Olympe Gouges (pseudônimo de Marie Gouse) intitulado Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em que ela se posicionou contra a relação discrepante entre homem e mulher, escrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Por escrever em defesa das mulheres, e possuir uma atitude altiva diante das injustiças, foi condenada à guilhotina.
Ao longo do tempo o feminismo promoveu desdobramentos alcançando outras perspectivas, incluindo recortes de classe e raça. A luta principal é por igualdade de gênero e por mais participação da mulher na sociedade. O movimento está presente na luta por melhores salários, no direito à nossa integridade física, no acesso das mulheres à educação, na igualdade de gêneros, no direito ao divórcio, na conquista do voto, no direito ao aborto. São pautas fundamentais para o feminismo.
Ser mulher em uma sociedade machista e misógina é bastante desafiador, uma verdadeira batalha cotidiana. Em diversas situações, a condição de ser mulher vem antes de nossa inteligência, nosso talento, nossa garra, nossa capacidade para produzir, nossa competência profissional etc. o machismo estrutural que perpassa nossa sociedade (inclusive no que tange a condição mais simbólica) é algo que devemos combater nas famílias, nas organizações, nos discursos preconceituosos, nos comportamentos que insistem em colocar o ser masculino em um patamar de superioridade.
Segundo Lola Aronovich, no prefácio do livro A Criação do Patriarcado de Gerda Lerner, “o patriarcado mantém e sustenta a dominação masculina, baseando-se em instituições como a família, as religiões, a escola e as leis. São ideologias que nos ensinam que as mulheres são naturalmente inferiores. Como exemplo, foi por meio do patriarcado que se estabeleceu que o trabalho doméstico deve ser exercido por mulheres e que não deve ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho. Trata-se de algo visto de modo tão natural e instintivo, que sequer nos damos conta. Portanto, ler e falar sobre o patriarcado é desnaturalizar nossa existência, é reparar que existe um sistema estrutural que ainda mantém a hierarquia da sociedade”.
Sobretudo os homens necessitam com urgência questionar e combater a própria dominação masculina. Deve ser complicado manter esse lugar de provedor, macho, hetero, branco, viril etc. Nada que se compara ao que nós mulheres sofremos, apenas a simples constatação de que um sistema machista e misógino pode provocar o adoecimento de todos nós.
Precisamos internalizar mudanças de postura no ambiente doméstico, nas empresas públicas e privadas. O termo feminino transpõe a condição de gênero e também não deveria ser usado apenas como forma pejorativa relacionada à fragilidade. Demonstração de afeto, sensibilidade e dignidade não podem significar fragilidade, ao contrário, é um ato de coragem em uma sociedade que insiste em promover violências de todos os tipos.
Algumas mulheres mesmo sendo vítimas do sistema patriarcal propagam essa suposta superioridade masculina porque foram condicionadas a acreditar nesse discurso. Existem muitas formas de silenciar uma mulher, uma das é fazer com que ela rejeite o feminismo. Neste sentido, ele se torna ameaçador porque traz em seu bojo a libertação das mulheres e afeta diretamente o status quo da dominação masculina.
Nossa sociedade tem muita dificuldade em compreender a autonomia de uma mulher que pensa além do óbvio e por esse motivo padronizam comportamentos ditos "femininos". Se a gente tem uma visão crítica sobre determinados assuntos, somos tachadas como chatas ou exigentes. Se questionamos algum desvario ou agressividade de alguns homens, somos loucas. Em diversas situações, tive a nítida sensação de ser interrompida por discursos velados de machismo. Exemplo de uma frase (dentre tantas): você é mulher, não deveria agir dessa forma. Ouvi essa frase em ambiente de trabalho.
O discurso é sempre baseado em uma suposta “fragilidade” feminina ou “ausência de inteligência”, porque nessa lógica machista a mulher é um ser inferior. Esse lugar é conveniente para o conforto daqueles (as) que julgam que uma mulher deve se comportar de acordo com um “status quo” vigente; qualquer pensamento ou comportamento que rompa com esse padrão é estigmatizado e considerado inadequado.
A autora Clarissa Pinkola escreve no livro Mulheres que Correm com os Lobos que “enquanto a mulher for forçada a acreditar que é indefesa ou for treinada para não registrar no consciente o que sabe ser de verdade, os impulsos e dons femininos da sua psique continuarão a ser erradicados.”
Nós mulheres não devemos “facilitar” a vida daqueles (as) que não suportam uma atitude empoderada. Assumir nossa forma de ser é cuidar de nossa existência. Sigo provocando “incomodo” de forma consciente e desconstruindo a cultura do patriarcado em meu cotidiano. À medida que a gente lê com profundidade o mundo, as pessoas e os livros, percebemos que a vida não cabe em “caixinhas prontas para consumo”.
Gosto muito de uma frase da escritora, feminista e ativista dos direitos civis, Audre lorde, que diz: “se eu mesma não me definisse, seria esmagada pelas fantasias de outras pessoas em relação a mim e devorada viva”. Essa frase foi especialmente cunhada para nós mulheres!
Uma postura inventiva, enérgica, empoderada é o que pode garantir uma melhoria na nossa condição de mulher na sociedade, associado a políticas públicas que amparem mulheres que decidiram serem mães, para que elas possam exercer sua profissão e deixar seus filhos(as) em creches; organizações privadas com políticas de salários que condizem com a competência da profissional; mais atuação das mulheres na seara política, etc.
Por fim, finalizo com uma frase de Ursula K. Le Guin que a autora Rebecca Solnit destacou em seu livro: “quando nós mulheres apresentamos a nossa experiência como a nossa verdade, como verdade humana, todos os mapas se alteram. Surgem novas montanhas”.
Celebro a existência de todas as mulheres que habitam em mim! Escalar essas montanhas é dever de todes!
*Manhana de Castro. Gestora Ambiental, Empreendedora
Aspirante a escritora
Link da imagem: https://teoriaedebate.org.br/2021/02/04/quarta-onda-do-feminismo-analises-introdutorias/
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