*Por Jorge Antonio Ribeiro
Com a democratização da internet, das redes sociais e diversos outros meios de comunicação, as teorias conspiratórias ganharam novos e robustos canais de disseminação, agregando crescentemente adeptos e moldando a percepção e conduta de diversas pessoas em seu convívio político e social, isto é, no comportamento e na percepção do mundo. Nessa discussão, trato de um fenômeno que não é recente e que vem influenciando crescentemente o comportamento social e político de homens (em sua maioria), principalmente homens jovens em processo de amadurecimento (transição da adolescência para a vida adulta): a RedPill.
A RedPill é um movimento que vem desde o início da última década, advindo de diversas comunidades masculinas ligadas à sedução, conquista e sociabilidade, que se reuniam em fóruns e grupos de diversas redes sociais (principalmente Facebook) ao redor dos PickUp Artists (PUA), uma sigla americana que diz respeito à homens que clamavam ter descoberto uma espécie de “ciência exata” em relação à sedução, atração e conquista. O canadense Erik von Markovik era o mais famoso deles, contando com um programa de TV (The Pickup Artist, exibido pela VH1 em 2 temporadas entre 2007-2008) que ensinava sedução para homens que tinham muitas dificuldades de socialização com o sexo oposto fruto de timidez e outros fatores socio-psicológicos advindos da criação e do processo de amadurecimento ao longo da trajetória para a vida adulta. Erik von Markovik (2007) não só escreveu um texto considerado “bíblico” pela comunidade, chamado “Mystery Method”, como também participou da publicização dos PickUp Artists através do escritor americano Neil Strauss (2008), com seu livro “O Jogo”.
Mas você deve estar se perguntando: o que a RedPill tem a ver com isso?
A comunidade dos PUA’s passou por diversas transformações ao longo dos anos, especialmente com a intensificação das lutas feministas e com a crescente independência feminina. Houveram aqueles que buscaram se readaptar às mudanças provocadas pelo feminismo, passando a incluir discussões sobre masculinidade tóxica e machismo, que antes eram objeto de indiferença dessa comunidade, e como a sedução e a conquista eram possíveis diante desse novo cenário do comportamento feminino. Mas como nem tudo na vida são flores, grande parte dessa comunidade já dispersa, passou a pregar resistência contra essa transformação social impulsionada pelo feminismo e pelas discussões de gênero. A resistência passou a se reorganizar sob novos líderes, fazendo uso de teorias conspiratórias sobre um mundo onde “as mulheres estariam no controle total” e que a masculinidade estaria fadada à decadência. Crescia o movimento da RedPill, que ganhou projeção com a publicação do “O Homem Racional”, do escritor americano Rollo Tomassi. Nesse texto, Tomassi (2013) chama a atenção para um papel manipulador do sexo feminino direcionado ao masculino, com o objetivo de atender demandas e necessidades suas, sendo uma prova cabal de que “as mulheres estariam no controle” (se bem entendi, uma espécie de dominação feminina e subversão do masculino). Esse manifesto que pregava uma espécie de “privilégio feminino” virou um texto bíblico para a RedPill.
A RedPill faz alusão ao filme “Matrix”, lançado em 1999, especialmente na cena em que Neo tem a chance de ver o mundo por uma outra perspectiva, isto é, tomando a pílula vermelha e descobrindo uma espécie de “verdade oculta”. Esse movimento da RedPill se inspira nessa analogia entre verdade factual e verdade oculta para fazer coro a um discurso de que o feminismo estaria destruindo as bases fundamentais da sociedade, isto é, uma espécie de “conformação natural” do papel da mulher e do homem. Na visão desse movimento, a estrutura político-jurídica do mundo estaria privilegiando o sexo feminino e subvertendo o masculino, com a promoção de leis de enfrentamento à violência contra a mulher (feminicídio, abuso sexual e moral, e outras formas). Esse movimento é transnacional, e como tal, possui diversas ramificações no Brasil.
No Brasil, você encontra diversos influenciadores e criadores de conteúdo que contribuem diretamente para a divulgação dessas ideias conspiratórias sobre uma realidade social marcada pelo privilégio feminino. Canais do YouTube como “RedCast”, “Submundo Intelectual”, “Atitude Alfa”, “Social Arts”, “Don Sandro”, são fonte inesgotável de propagação dessa teoria conspiratória de uma ordem política e social que privilegia as mulheres, alterando a natureza das relações sociais e negando o papel natural feminino de “submissão ao masculino”. O discurso geral desses canais caminha por essas linhas, estimulando toda sorte de ódio e preconceito contra mulheres não-cristãs, não-conservadoras, gordas, feministas, mães solteiras, isto é, toda mulher que tenha um comportamento feminista (aqui, tratando de uma independência econômica e sexual, grosso modo). Todos eles estão alinhados a um discurso contra o feminismo, contra a reestruturação de papéis de gênero, contra leis e políticas afirmativas para o sexo feminino, por exemplo. Trata-se de um movimento político de reação ao liberalismo político, em prol do nacionalismo/conservadorismo, preservando a representação tradicional dos papéis de gênero. Não à toa é possível ver diversos influencers no Instagram tratando desse mesmo discurso da RedPill, só que de forma mais dissimulada e envolta em misticismos e religiosidade misturadas com interpretações psicológicas e psicanalíticas a respeito dos comportamentos dos sexos.
Uma questão importante deve estar sempre em perspectiva: quem propaga, divulga e até recria conteúdo da RedPill, ainda que não faça parte de nenhum grupo extremista, contribui para um ambiente tóxico e hostil na internet e fora dela, propagando toda sorte de ódio contra mulheres (e minorias também). Se aproveitam das frustrações dos homens para lucrarem com vídeos e conteúdo falseadores da realidade, que em última instância provocarão mais sofrimento a esse público e com grande chance de jogá-lo para fora da realidade. Estando fora da realidade, muitos jovens acabam entrando em grupos que estimulam violência política, extremismo político, racismo, xenofobia, dentro de uma matriz conspiratória que lhe acolhe e lhe oferece uma razão existencial. RedPill não é somente um movimento e uma comunidade que prega uma espécie de “uso instrumental do sexo feminino” por parte dos homens, isto é, “usar a mulher apenas para suprir suas necessidades seuxais sem qualquer tipo de compromisso”, dado que para essa comunidade boa parte das mulheres assemelha-se à prostituição, restando poucas mulheres “dignas” e valorosas: é um movimento que visa minar o feminismo e as conquistas das mulheres, visa condenar seu comportamento independente, e, além disso, visa manter viva uma concepção de masculinidade e de relacionamento que, em muitas situações, não são mais condizentes com a realidade hoje.
Fecho esse texto breve, chamando a atenção para jovens adultos e adolescentes que consomem esse conteúdo, ou conhece quem o faz: não se enganem com esses influenciadores redpillados do YouTube. Eles não desejam que vocês se curem das suas frustrações e problemas com o sexo oposto. Eles não têm qualquer responsabilidade sobre o que propagam e criam. Só querem uma coisa: monetizar às custas dos seus problemas, frustrações e questões mal resolvidas. Assim como muitos canais do YouTube e influenciadores em outras redes sociais lucraram muito com desinformação durante a pandemia do COVID-19, esses mesmos YouTubers que propagam discurso da RedPill e “militam” nessa comunidade, ganham dinheiro às custas do seu sofrimento. Distorcem a realidade com esse fim, incitando ódio contra o sexo oposto, num primeiro momento, e contra a própria ordem social, em última instância. Eles gostam de dizer que os homens estão “despertando”, mas reafirmo o contrário: estão “adormecendo” perante a realidade, preferindo se alienar do que se transformar e viver plenamente. Consumir esse conteúdo traz consequências psicológicas e sociais danosas e potencialmente irreversíveis para a sua individualidade. Cuidado com os “arautos da verdade sobre o comportamento feminino”. A realidade, como bem fala Max Weber, “é um emaranhado tão complexo que apreender o seu sentido é uma tarefa difícil, sendo possível capturar partes dela”.
Na parte 2 deste texto, entrarei na discussão sobre como a RedPill funciona como uma porta de entrada para o extremismo político e as consequências sociais e psicológicas desse tipo de conteúdo para homens e mulheres, especialmente com a crescente radicalização e propagação de teorias conspiratórias que têm na RedPill sua catalisadora.
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* Jorge Antonio da Paz Ribeiro é Bacharel em Ciência Política (UFBA) e Mestrando em Ciência Política (UFBA)
REFERÊNCIAS:
Textos:
DOLL, Kate. “Rollo Tomassi on feminism and masculinity”. Shortform. Disponível em: <https://www.shortform.com/blog/feminism-and-masculinity/>, 2022.
BUJALKA, Eva. RICH, Ben. BENDER, Stuart. “The Manosphere as an Online Protection Racket: How the Red Pill Monetizes Male Need for Security in Modern Society”. Fast Capitalism, Volume 19-Issue 1, 2022.
QUEERVOIR. “O Mundo de Cinderela”. 2021. Disponível em: <http://www.queervoir.com/2021/07/omundodecinderela.html>. .
STRAUSS, Neil. O jogo: A Bíblia da Sedução (Penetrando na Sociedade Secreta dos Mestres da Conquista). BestSeller, 2008
MARKOVIK, Erik von. The Mystery Method: How to Get Beautiful Women Into Bed (English Edition). St. Martin's Press, 2007.
VALLERGA, Michael. ZURBRIGGEN, Eileen L. Hegemonic masculinities in the ‘Manosphere’: A thematic analysis of beliefs about men and women on The Red Pill and Incel. Analyses Of Social Issues And Public Policy (ASAP). 2022. Disponível em: <https://spssi.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/asap.12308>.
TOMASSI, Rollo. The Rational Male. Createspace, 2013.
Vídeos:
“Red Pill: A search for dating advice turns into radicalization”. CNN. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CEhW3YxwXSo&ab_channel=CNN>. 2017.
“Britain's Anti-Feminist Men”. Reggie Yates Extreme/Real Stories. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JP9ucyoJraQ&ab_channel=RealStories>. 2021
“REDCAST O PODCAST DOS MACHOS ALFAS... (será?)”. Suavemente Comentado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2twPxiifoac&ab_channel=SuavementeComentado>. 2022.
“MACHOSFERA INTELECTUAL ME JANTOU”. Suavemente Comentado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ztFku9Ajg34&ab_channel=SuavementeComentado>. 20191.
“REACT - TAYLOR SIMÃO E A REDPILL DOS MACHO ALFA” Tiago Santinelli. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6a_V6VX1I_w&ab_channel=TiagoSantineli>. 2022.
“Secret Service report shows growing incel terrorism threat against women”. CBS News. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d4gyPKzT8xc&ab_channel=CBSNews>. 2022.
Tentar conversar com um "REDPILL" é o mesmo que conversar com um terraplanista. São pessoas frustradas, cujo ego são amaciados pelo senso de pertencimento. São homens totalmente frustrados que parecem criancinhas que não sabem lidar com mulheres. Não dá pra conversar.
Que material ótimo! Explica bem as falas de homens de podcast soltando todo tipo de tolice sobre mulheres "controladoras" . Vi muito isso inclusive no meio esotérico. Com outra linguagem, mas a mesma perspectiva.
Isso compactua totalmente com o bolsonarismo e o extremismo de direita. Lamentavelmente,só vejo isso crescendo e seus adeptos eleitos para cargos parlamentares