SOBRE CINEMA E FILOSOFIA
- Autor(a) Convidado
- 18 de dez. de 2024
- 9 min de leitura

*Éverton Nery Carneiro
O cinema possui seu jeito único de pensar: é um universo tecido por imagens, sensações e ilusões, onde os mundos de Fellini, Antonioni e Wenders revelam a arte como expressão máxima do pensamento visual. Já a filosofia, por sua vez, é essa criatura estranha, inquieta, que rejeita tanto a verdade absoluta quanto o consenso cômodo. Nietzsche nos provoca: “Dê-me uma verdade e eu te darei mil escravos.” Assim, a filosofia torna-se encantamento, atitude, um chamado à liberdade que não se basta ao nascer – ela exige um cuidado: o cuidado de si e do outro, uma prática constante de reflexão e transformação. Esse cuidado vai além do instinto, exigindo uma consciência ativa que desafia os padrões e nos obriga a questionar tanto o mundo quanto a nós mesmos. No cinema, esse mesmo movimento de cuidado se traduz em imagens que provocam, em narrativas que desestabilizam, tornando a arte um espelho e, ao mesmo tempo, uma janela para novas possibilidades de existência. Através das imagens e histórias, o cinema nos convida a enxergar além do óbvio, a sentir o mundo com frescor e a reconstruir nossa relação com o real. Esse cuidado, tanto no cinema quanto na filosofia, é uma forma de resistência ao hábito e ao conformismo, uma abertura para a transformação que nos envolve na capacidade de imaginar mundos e vivências.
Entendemos, de um dado jeito, que não há encontro ou desencontro entre o cinema e a filosofia, há uma dança entre a visão e o pensamento, entre a experiência sensorial e a reflexão crítica. O cinema, com suas imagens e enquadramentos, não apenas retrata o mundo, mas o recria, propondo desvios e deslocamentos que nos levam a reconsiderar o habitual. A filosofia, com suas perguntas intempestivas, desafia as certezas e abre espaço para que possamos olhar o conhecido como se fosse estranho. Juntos, cinema e filosofia nos convidam a abandonar as zonas de conforto, a explorar os abismos do existir e a nos permitir ser transformados pelo encantamento.
Enquanto a filosofia não nos oferece “mais”, mas “menos”, ela nos conduz de volta à essência dentro da experiência. Na Grécia antiga, o teatro não era lazer, mas formação, uma prática que moldava o caráter e desafiava o pensamento. A filosofia, nesse cenário, emerge como uma expressão de desvios, enfrentando o senso comum, este que é moldado pelo hábito. E, se o hábito nos prende, somos chamados a transgredi-lo, a questionar as certezas que nos mantêm estagnados. Essa transgressão não é uma simples negação, mas um movimento criativo, uma abertura para o desconhecido que desafia o conforto do hábito e promove a reinvenção do pensamento. Como o teatro na Grécia antiga, que formava cidadãos e expandia horizontes, a filosofia nos convida a abandonar o automatismo e a buscar o que é essencialmente humano: a capacidade de pensar com liberdade, criar novos sentidos e transformar tanto a nós mesmos quanto o mundo onde somos jogados.
É neste desafio que Augusto dos Anjos nos lança a questão: “Seria a ideia uma construção ou...?” A resposta surge na arte, onde os artistas são pensadores, e o cinema, seu terreno fértil. Cada filme é uma multiplicidade de pensamentos em movimento, um diálogo entre inteligência e coragem. Sim, coragem, pois pensar é também romper com os velhos padrões que nos conformam-se e nos aprisionam. No cinema, essa ruptura se manifesta em imagens que desconstroem o óbvio, em narrativas que nos colocam diante do estranho e do inesperado. É uma coragem que exige enfrentamento, não apenas com o mundo externo, mas também com nossos próprios limites e preconceitos. Cada obra de arte, cada filme, é um convite para transcender o hábito, para abrir novos caminhos no pensamento e para experimentar a liberdade de criar e recriar o sentido da vida.
É nesse espaço que a ideia deixa de ser apenas construção e se torna (trans)formação, uma força que nos desacomoda e nos provoca a agir. No cinema, essa força aparece em imagens que capturam o invisível e nos confrontam com o estranhamento; na filosofia, ela se manifesta na ruptura com os dogmas e na abertura para o novo. Juntos, filosofia e cinema nos convidam a ultrapassar as fronteiras do hábito, a questionar o conhecido e a recriar o real. É um movimento que exige coragem, sensibilidade e disposição de transgredir o comum, revelando que a arte e o pensamento não apenas refletem o mundo, mas também o transformam. Afinal, tanto no cinema quanto na filosofia, reside a essência de um único e poderoso chamado: o de viver e pensar com transversalidade, explorando a liberdade como um processo contínuo de criação e reinvenção. Esse chamado nos desafia a olhar o mundo com olhos renovados, a romper com o previsível e a mergulhar no desconhecido, onde a vida encontra seu verdadeiro significado na coragem de ser existencialmente o que se é, sendo este “é” sempre um gerúndio, ou seja, um sendo, pois temos sempre um movimento e não uma fixidez.
Esse processo é uma reinvenção, não como um ponto de chegada, mas um fluxo constante, um movimento que une o pensar e o sentir em uma dança interminável de criação. No cinema, ela se traduz em imagens que nos desnudam e nos revelam a complexidade do humano; na filosofia, em questionamentos que abalam certezas e nos convidam a habitar o desconforto do novo. Assim, viver e pensar não são apenas atividades, mas posturas diante da existência, que excluem de nós, não apenas entendimento, mas também entrega, coragem e disposição de transformar tanto o mundo quanto a nós mesmos. É nesse eterno recomeço que a arte e o pensamento encontram sua potência mais profunda: a de iluminar caminhos onde antes só havia sombra, abrindo horizontes para aquilo que ainda não foi imaginado.
A razão, no entanto, não deve ser confundida com o pensamento. O pensar emerge da matéria da sensação, sempre aliada à ideia. É a sensação que nos dobramos para fora de nós mesmos, sem nos reduzir a outra coisa, e é pela arte que ela nos reconstrói. Quando o cérebro encontra as novidades artísticas, novas conexões se formam – é o toque transformador da arte, que nos convida a experimentar o mundo de maneira ampliada e renovada. Esse encontro entre sensação e ideia não apenas expande nossa percepção, mas também nos possibilita transcender limites previamente estabelecidos, proporcionando um verdadeiro detalhe do ser. Assim, a arte nos transforma, não ao importar verdades, mas ao abrir caminhos para que possamos criar nossas próprias, sempre em diálogo com a infinita diversidade de sentido.
A filosofia nunca caminha sozinha. Ela possui coisas que a elevam e a aproximam: da história, da pureza, da beleza e da incerteza. Como o espadachim chinês que aprende a lutar pela caligrafia, percebemos que o movimento é o centro de tudo. Está no traço da caligrafia, no gesto do poema, no ritmo do cinema. Manuel de Barros nos lembra que “o poema é, antes de tudo, um utensílio” – um meio para nos fazer avançar. Assim como na vida, as verdadeiras coisas acontecem sem aviso. É por isso que Chico Buarque canta: “Não se afobe não, que nada é pra já.” O amor sabe esperar, assim como o pensamento e a arte, que são forças grandes demais para a imprensa do imediato, pois exige tempo, paciência e coragem de habitar o processo. Filosofia e arte não são pressa; são gestos que se desenrolam no compasso da existência, no ritmo de quem se permite criar e recriar. Como a caligrafia do espadachim, que prepara não apenas o golpe, mas o ser, o pensamento e a arte moldam nosso olhar para o mundo, revelando o que há de mais essencial: a capacidade de viver com profundidade e significar o que antes parecia sem sentido.
Nesse fluxo contínuo, o movimento nos ensina que a vida, como a poesia e o cinema, é antes de tudo um utensílio para descobrir o desconhecido e transformar o ordinário em extraordinário. É na filosofia, com sua abertura ao imprevisto, e na arte, com sua capacidade de criar mundos, que encontra a possibilidade de transcender o imediato e o habitual. Juntas, elas nos convidam a ver, sentir e pensar para além das limitações impostas, oferecendo-nos não apenas respostas, mas novas perguntas. Assim, seguimos, como viajantes, explorando o que há de mais íntimo e de mais vasto, desvendando o invisível e recriando a realidade, movidos pela busca incessante de significados e pela coragem de nos reinventarmos sempre. Na sua essência, a filosofia e o cinema juntamente com o estranho. Para os gregos, o viajante era o modelo ideal, sempre um estrangeiro, um estranho em sua jornada.
Em Antonioni percebemos um explorar dos traços finais de emoção nos seres humanos, quase como relíquias em museus, enquanto Hitchcock transforma os limites do cinema em paradoxos. Nietzsche chamou isso de intempestivo, e Godard acrescenta que o cinema existe para tornar o real visível. Nesse diálogo, a filosofia encontra sua potência na arte, assim como Heisenberg, que, ao ouvir que sua física quântica não era "física", respondeu: “Fique com a física, eu fico com uma verdade”. Nesse encontro entre ciência, filosofia e arte, revela-se a essência do humano: a busca incessante por sentido, mesmo diante do enigma e da fragmentação do real. É nessa convergência que o cinema, assim como a filosofia, transforma a percepção do mundo e nos coloca frente ao imponderável.
O cinema, como a filosofia, nos lança perguntas profundas. Pergunta de Wim Wenders: “O que acontece com um homem que enfrenta os abismos do mundo?” É nos abismos que a arte começa, onde a imitação cessa e o artista se revela. Kant, com seus passeios diários, nos lembra que o pensamento é um mistério – um espaço entre o visível e o inefável. O cinema captura essa essência em seus enquadramentos, permitindo-nos entrar e sair do habitual, desafiando as latas e formas previsíveis de percepção. O cinema, assim como a filosofia, rompe com a banalidade e nos convida a enxergar além da superfície, explorando o invisível que permeia o cotidiano. É nesse movimento entre o abismo e a revelação, entre o habitual e o extraordinário, que ambos nos confrontam com o mistério da existência, transformando o simples ato de olhar uma experiência em encantamento, mistério e aporia.
Como Fred Astaire na chuva, o cinema transforma obstáculos em suporte. Em vez de evitar, ele dança. O enquadramento torna-se um instrumento para desenquadrar, levando-nos além da superfície. Oscar Wilde dizia: “O mundo é um teatro, mas os atores são de péssima qualidade.” Talvez no cinema moderno sejam melhores. Porém, como sugere Bergson, a filosofia precisa evitar-se dos problemas superficiais e romper com os clichês da percepção. Só assim podemos buscar uma imagem pura, uma linha de fuga que nos devota à criação de novos sentidos e novas formas de ver e/ou perceber o mundo. O cinema, então, não é apenas um reflexo da realidade, mas uma reinvenção dela, um espaço onde o visível se entrelaça com o imaginário, e onde o espectador é convidado a participar da construção do significado. É nesse movimento, na dança entre o obstáculo e o suporte, que o cinema se torna filosofia em ação, uma linha de fuga que nos devota à liberdade do pensamento e ao poder ético da criação, onde cada imagem carrega em si a possibilidade de transcender o óbvio e revelar o invisível, transformando o ato de ver em uma experiência primordial, primeva.
O cinema, assim como a filosofia, não se limita a explicar o mundo, mas a recria-lo, desafiando convenções e abrindo brechas para o novo. Ele nos conduz para além dos limites do senso comum, rompendo com o previsível e nos lançando em uma jornada de descoberta. Nessa dança entre o enquadrar e o desenquadrar, entre o real e o imaginado, o cinema torna-se uma experiência de liberdade, onde a imagem pura não é apenas vista, mas vívida. Assim, ele nos dedica à potência criativa de transformar obstáculos em arte e limites em possibilidades, convidando-nos a (re)imaginar o mundo e nós mesmos. O cinema, então, não apenas reflete a realidade, mas se expande, criando espaços onde a sensibilidade, o pensamento e a emoção se encontram. É nesse entrelaçamento que ele se afirma como uma linguagem universal e singular, capaz de transcender fronteiras e nos conectar ao que há de mais profundo, essencial e existencial na experiência humana.
Essas fronteiras, são uma linha líquida, tal como formula Bauman, sendo, portanto, vida, sendo construção de uma identidade, sempre e permanentemente em mudança – mesmo na era digital, onde todo original é também uma cópia. No cinema, cada cópia é uma nova versão do original. Mas onde está a identidade? Talvez seja uma ficção, assim como nossa própria assinatura nunca é idêntica a si mesma. Ainda assim, é no cinema que encontramos o convite à transformação. Cada filme nos pede que transgridamos, que avancemos, que nos encantemos.
Encantar-se é deixar-se filmar, entregar-se à arte como um pássaro que canta sem finalidade. É no olhar de Fellini que encontramos a tensão entre o monstro e a menina: o monstro é a morte, a menina, a vida – uma vida que não guarda ressentimento, mas cria. Como Fellini nos alerta, o mundo só ganha sentido quando é produzido, quando a vida se inscreve nas personagens e estas se tornam verdadeiramente vivas. Assim, o cinema não apenas reflete, mas transforma. Ele nos ensina que o pensar, como o viver, exige coragem, transgressão e abertura. Deixemo-nos filmar, pois, em cada imagem, há a possibilidade de nos encontrarmos e nos encantarmos em cada canto do escurinho do cinema!
*doutor em teologia
O texto propõe uma reflexão sensível sobre como essas duas linguagens se entrelaçam. O cinema é visto como pensamento em movimento, capaz de provocar e questionar, enquanto a filosofia desafia certezas e convida à liberdade.
Esse texto é uma viagem profunda e bonita entre o cinema e a filosofia, mostrando como pensar e sentir andam juntos. Ele diz que tanto a arte quanto o pensamento não estão aí pra explicar tudo, mas pra reinventar o jeito que a gente vê o mundo. É um chamado pra sair do automático e se deixar encantar de verdade.
Propõe uma profunda reflexão sobre o diálogo entre cinema e filosofia, destacando como ambas compartilham a missão de romper com o óbvio, desafiar o conformismo e provocar o pensamento. O cinema é visto como uma forma de pensamento sensorial, que, como a filosofia, questiona, transforma e recria o mundo. Através da arte, somos convidados a transcender o hábito, explorar o desconhecido e viver com mais profundidade, sensibilidade e liberdade.
Um texto sensível e profundo que mostra como cinema e filosofia não apenas dialogam, mas dançam juntos: provocam, desacomodam e reinventam nossa forma de ver, sentir e pensar o mundo.
O texto estabelece uma conexão entre o cinema e a filosofia, encarando-os como maneiras de compreender e experimentar o mundo. A filosofia, munida de uma postura questionadora e curiosa, e o cinema, valendo-se de uma linguagem visual e emocionante, combinam-se para estimular a reflexão e remodelar o cotidiano. Os dois quebram com a rotina, questionam convicções e impulsionam-nos à inventividade.Mencionando intelectuais e realizadores, o escritor argumenta que tanto a reflexão quanto a produção exigem dedicação, ousadia e admiração. O cinema não só espelha o mundo, mas o reconstrói, convertendo-se numa modalidade de filosofia em ação. Por fim, somos incitados a permitimos ser afetados e modificados pela arte tal qual alguém que vive, reflete e idealiza em constante mutação.