SOBRE IDENTITARISMO: Pelo Viés Fenomenológico
- Everton Nery

- 22 de out
- 3 min de leitura

Nos tempos recentes, a palavra “identitarismo” tem ganhado notoriedade no discurso público, e não raras vezes revestida de uma tonalidade pejorativa, repleta de escárnio ou desdém. Tal termo passou a ser usado como uma espécie de marcador depreciativo, que rotula determinadas reivindicações políticas como excessivas, fragmentárias ou mesmo ressentidas. Para alguns setores, tornou-se uma palavra-coringa, invocada para desautorizar demandas por reconhecimento, esvaziando suas dimensões éticas e históricas. Mas a pergunta que permanece incômoda e não silencia é: por que o termo “identitarismo” desperta tantas reações defensivas?
Uma possível explicação pode ser encontrada na carga simbólica do sufixo “-ismo”. Como observam diversos estudiosos da linguagem e da filosofia, esse desinência carrega uma ambiguidade estrutural: ora remete a um sistema de ideias ou práticas político-sociais (como no caso do “feminismo” ou do “socialismo”), ora adquire um tom patologizante (como em “autismo” ou “reumatismo”), reduzindo experiências históricas a desvios individuais ou a sintomas de um corpo social adoecido. Nesse sentido, quando se invoca “identitarismo”, muitas vezes se pretende mais desqualificar do que compreender, mais desacreditar do que dialogar. A palavra passa a operar como aquilo que Merleau-Ponty (2006) chamaria de "sedimentação do sentido": um vocábulo que, por força do uso ideológico, cristaliza preconceitos e impede o acesso ao fenômeno em sua complexidade.
Contudo, a resistência ao chamado “identitarismo” não se limita a uma disputa linguística. Ela remete a um desconforto mais profundo, que interroga a própria constituição do sujeito moderno. Fenomenologicamente, a identidade não é uma substância imóvel, mas uma experiência em fluxo, que se realiza na relação com o mundo e com os outros, tal como Husserl (1994) enfatiza em sua análise da intersubjetividade, o eu é sempre um “eu com”, um sujeito em situação. Portanto, quando grupos subalternizados (mulheres, negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+) tomam a palavra e nomeiam seus lugares de fala, eles não estão apenas reivindicando visibilidade, mas questionando a universalidade do sujeito que antes ocupava silenciosamente o centro da cena.
O incômodo reside aí: ao se insurgirem contra esse sujeito pretensamente neutro (branco, cisgênero, heterossexual, europeu), os movimentos identitários não apenas pedem inclusão, mas desnudam o caráter excludente da norma. Como alerta Emmanuel Lévinas (1993), o encontro com o outro é sempre um chamado ético que desestabiliza o eu em sua mesmice. Recusar essa alteridade, rotulando-a de “identitarismo”, é uma tentativa de manter intacta uma ordem simbólica que já não se sustenta.
Por isso, qualquer crítica às políticas identitárias (e elas são necessárias) precisa ser feita com discernimento, distinguindo o debate legítimo da defesa reativa do status quo. A fronteira entre a análise crítica e o silenciamento é tênue, e o que muitas vezes se chama de “radicalismo identitário” pode ser, na verdade, a recusa digna de permanecer calado diante de uma violência estrutural.
No fundo, talvez o problema não esteja no plural que emerge, mas na dificuldade de escutá-lo sem querer controlá-lo. A filosofia fenomenológica nos convida a suspender os preconceitos e acolher o outro como mistério, não como ameaça. É nessa escuta que se abre a possibilidade de um mundo comum, não mais baseado na homogeneização, mas na diferença que transforma.
Referências:
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Identidade e diferença: uma leitura a partir da fenomenologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: Livro I. Trad. Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 1994.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Trad. José Nunes. Lisboa: Edições 70, 1993.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos A. R. do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.



A conclusão propõe uma escuta filosófica e sensível da diferença, vendo nela uma força de transformação e não uma ameaça à convivência.
A crítica às políticas identitárias deve ser feita com responsabilidade, evitando transformar o debate em instrumento de silenciamento.
Ao citar Lévinas, o texto reforça que o encontro com o outro é um desafio ético que exige abertura e empatia, não rejeição.
O autor destaca que a identidade é uma construção dinâmica, vivida em relação com o outro, e não uma essência fixa.
A reflexão sobre o sufixo “-ismo” mostra como a linguagem pode carregar preconceitos e moldar visões negativas sobre movimentos sociais.