SOBRE JOAQUIM: O Herói e o Traidor
- Everton Nery

- 16 de jul.
- 3 min de leitura

A crítica histórica, econômica e psicanalítica que aproxima os traidores, historicamente separados, pérfidos unidos, agora percebidos sob a sombra simbólica de outro Joaquim, no caso, o Joaquim José de Oliveira Xavier, o Tiradentes, que nos convida a uma reflexão profunda sobre os sentidos da traição e da soberania. O que está em jogo não é apenas a análise de eventos isolados, mas a identificação de uma estrutura de repetição que atravessa a história brasileira, marcada pela dificuldade de afirmar-se como sujeito coletivo diante de forças que demandam submissão, seja à metrópole colonial, seja ao império do capital internacional.
Na perspectiva econômica, a atitude de Joaquim Silvério dos Reis revela o que poderíamos chamar, com uma certa ironia trágica, de realismo pragmático colonial. Seu gesto não foi meramente pessoal, embora fosse motivado por interesses próprios, mas inscreve-se numa lógica mais ampla de captura da subjetividade econômica pela lógica do poder imperial. Ao aceitar a dívida como culpa e o perdão como salvação, Silvério dos Reis instituiu, simbolicamente, uma economia da dependência que ecoaria em diversas formas ao longo da história brasileira.
Se num determinado tempo, existiu um traidor, o Silvério dos Reis, atualmente encontramos um outro traidor, o filho de um ex-presidente, que por sua vez, representa essa mesma lógica de submissão, agora travestida de alinhamento ideológico. Diante das taxações de Trump, não houve reação proporcional em defesa da indústria nacional ou das relações comerciais estratégicas, o que revela um déficit de soberania travestido de diplomacia. A entrega simbólica da autonomia econômica sob a justificativa de uma afinidade política configura, mais do que um erro de cálculo, um abandono consciente da função representativa. O liberalismo retórico se dissolve na prática da subordinação, como se o Brasil fosse uma extensão ideológica de Washington, e não um ator autônomo na arena global.
Sob a lente da psicanálise, ambas as figuras, Silvério e um filho de um ex-presidente, revelam o que Freud chamou de desamparo originário, uma dificuldade de se constituir como sujeito diante da falta. A adesão à autoridade externa (Portugal ou Trump) surge como um modo de lidar com a angústia da castração simbólica, isto é, a impossibilidade de ser plenamente autônomo. No caso de Joaquim Silvério, isso se manifesta como medo do castigo e busca de proteção; no filho de um ex-presidente, como identificação projetiva com o líder estrangeiro, numa tentativa de compensar a fragilidade de sua posição nacional com a força imaginária do outro.
Lacan nos ajuda aqui com o conceito do Nome-do-Pai, a lei simbólica que funda a subjetividade. Quando essa lei está ausente ou enfraquecida, como nas estruturas políticas onde a representação nacional é vivida como simulacro, o sujeito busca no exterior um substituto para essa falta. Assim, o filho de um ex-presidente pode ser visto como alguém que não suporta o peso da representação autônoma do Brasil e precisa da validação externa (Trump, Bannon, etc.) para sustentar sua posição no discurso. Ele se torna, portanto, uma figura que atua não em nome de um povo, mas como um ventríloquo de forças externas.
Diante desses dois perfis, a figura de Tiradentes emerge não como um ideal inatingível, mas como significante de resistência. Tiradentes é aquele que assume a angústia, que não recua diante do corte simbólico exigido pela liberdade. Sua ação não foi um delírio de grandeza, mas um gesto político que implicou sublimação do medo em ética coletiva. Ele encarna o sujeito que, mesmo diante da morte, se mantém fiel a um ideal que transcende o eu e visa a fundação de um nós soberano.
No plano econômico, Tiradentes antecipa a noção de que liberdade política sem soberania econômica é farsa. No plano psíquico, ele representa a capacidade de dizer “não” à autoridade ilegítima, seja a do rei, seja a do mercado, e instituir uma nova lei fundada no desejo coletivo. Ele não apenas denunciou a exploração, mas assumiu o lugar simbólico do sujeito em falta que decide, ainda assim, agir.
Se Joaquim Silvério dos Reis representa a traição colonizada e o filho de um ex-presidente a traição globalizada, Tiradentes permanece como o signo da ruptura. Em ambos os casos de traição, há um elemento comum: o recuo diante da autonomia, a recusa de sustentar a angústia da liberdade. Em Tiradentes, ao contrário, a angústia é assumida como condição de possibilidade de um novo começo.
Comparar essas figuras é mais do que um exercício histórico: é uma convocação ao presente. A pergunta que se impõe não é apenas quem nos traiu, mas o que em nós permite ou deseja ser traído. É possível que a permanência dessas figuras, o traidor servil, o líder submisso e o herói solitário, revele mais sobre as estruturas do inconsciente coletivo brasileiro do que gostaríamos de admitir. E talvez só ao confrontar essa repetição possamos, enfim, nos autorizar a ser aquilo que Tiradentes sonhou: uma nação que ousa ser livre, inclusive de si mesma.
IMAGEM: Pensar Piauí



O filme Joaquim: o herói e o traidor retrata a vida de Tiradentes antes de se tornar símbolo da Inconfidência Mineira. Mostra um homem dividido entre ambições pessoais e o desejo de justiça, revelando suas contradições. Longe da figura heroica idealizada, Joaquim é apresentado como humano, complexo e influenciado pelas desigualdades do Brasil colonial. A obra propõe uma reflexão crítica sobre os verdadeiros significados de heroísmo e traição.
O texto propõe uma análise crítica e profunda da história brasileira, revelando como a traição à soberania nacional se repete sob novas formas. Ao comparar Silvério, Tiradentes e um político atual, mostra como a submissão externa persiste, agora disfarçada de alinhamento ideológico. A reflexão convida à autonomia política e simbólica, destacando Tiradentes como exemplo de coragem diante da angústia da liberdade.
Texto de muita relevância para a historia da nação. Pois faz-se nos tempos atuais, o pensar em "liberdade", inclusive de de si mesma. A sua fidelidade ao ideal de liberdade política corre paralela ao entendimento de que não há soberania política sem autonomia econômica, nem lugar para lideranças que se colocam a serviço de máquinas externas.
Um texto brilhante, que vai muito além do paralelismo histórico para nos confrontar com as feridas abertas da nossa formação política e psíquica. A articulação entre economia, psicanálise e história revela como a repetição da traição — da colônia à globalização — é menos sobre nomes e mais sobre estruturas que recusam a autonomia. A figura de Tiradentes, aqui, não é apenas heróica, mas ética: um símbolo do sujeito que escolhe agir apesar da angústia. Uma provocação poderosa: o que em nós ainda deseja ser submisso? E quando vamos, de fato, nos autorizar à liberdade?
Esse texto é um baita tapa na cara. Ele pega o passado e o presente e joga na nossa frente, mostrando que a tal “traição” no Brasil só muda de roupa. Ontem foi Joaquim Silvério vendendo Tiradentes pra Coroa, hoje é político bajulando potência estrangeira e entregando nossa soberania como se fosse brinde. O que mais pega é a provocação final: não é só sobre “quem nos traiu”, mas sobre por que a gente aceita ser traído.