top of page

TODOS BRINCAM DE BONECA: o que nos dizem os bebês reborn e as bonecas infláveis sobre o gênero, o consumo e o patriarcado




No imaginário popular, brinquedos são mais do que objetos de diversão: são dispositivos simbólicos que refletem e reforçam papéis sociais. Quando se trata de bonecas, essa simetria entre gênero e objeto se mostra de forma contundente. As bonecas reborn (réplicas hiper-realistas de bebês) costumam ser associadas ao universo feminino. Já as bonecas infláveis, geralmente hipersexualizadas, são majoritariamente destinadas ao público masculino. Ambas as práticas envolvem um certo tipo de projeção, mas são recebidas de forma profundamente desigual na sociedade. Enquanto mulheres que se envolvem com bonecas reborn são frequentemente alvo de escárnio ou patologização, homens com bonecas infláveis são, na melhor das hipóteses, ignorados e, em muitos casos, até naturalizados no discurso social como simples consumidores de produtos eróticos.


Esse duplo padrão revela, com clareza, o quanto o patriarcado opera por meio de estratégias de deslegitimação do feminino. O caso das mulheres que cuidam de bonecas reborn ilustra essa lógica. Nas redes sociais, frequentemente surgem vídeos e postagens ironizando ou acusando essas mulheres de "loucas" por tratarem bonecas como filhos. Circulam até mesmo fake news sobre o uso dessas bonecas no Sistema Único de Saúde (SUS), como se fossem pacientes reais ou substitutos para tratamentos psicológicos, o que não possui qualquer fundamento empírico ou institucional. Essa narrativa é reforçada por um imaginário social que ainda associa o cuidado, o afeto e a maternagem à irracionalidade quando partem das mulheres, principalmente se desvinculados da estrutura familiar tradicional.


Já a boneca inflável, por mais perturbadora que possa ser em seus contornos de objetificação do corpo feminino, é muitas vezes tratada como piada ou até como uma solução prática para necessidades sexuais. Não se discute se os homens que a utilizam estão alienados da realidade, se substituem relações humanas ou se projetam desejos sobre um objeto. O silêncio em torno dessa prática evidencia o quanto a masculinidade é protegida de julgamentos morais e psicológicos, mesmo quando expressa formas evidentes de desumanização ou isolamento.


Essa assimetria de percepção aponta para uma dimensão ainda mais profunda: o modo como o mercado estrutura narrativas em torno dos gêneros e seus “brinquedos”. O bebê reborn é frequentemente vendido com roupinhas personalizadas, certidão de nascimento e até carrinhos de bebê, em uma mise-en-scène que ativa o desejo de maternagem, cuidado e empatia. A propaganda vende uma simulação de vínculo. Já a boneca inflável é vendida com a promessa de satisfação e domínio. São produtos organizados sob lógicas distintas: para as mulheres, o apelo é afetivo; para os homens, é erótico. Contudo, ambos são impulsionados por estratégias sofisticadas de marketing que constroem desejos e comportamentos com base em estereótipos de gênero, reforçando uma cisão artificial entre “brincar de cuidar” e “brincar de usar”.


O problema não está no uso das bonecas em si, mas no modo como a sociedade lê esses usos a partir de um filtro patriarcal. O escândalo está menos nas bonecas e mais em quem as utiliza e de que forma se desvia do que o sistema espera. Quando uma mulher simula a maternidade com um objeto, ela ameaça a ordem do controle reprodutivo. Quando um homem simula uma relação com um objeto sexualizado, ele apenas reafirma uma ordem já naturalizada de dominação e desejo.


Portanto, é urgente deslocar o foco da crítica das usuárias das reborn para os dispositivos ideológicos que fazem dessas práticas alvo de chacota. Não se trata de patologizar o afeto, mas de desmascarar a hipocrisia social que o ridiculariza apenas quando praticado por mulheres. Nesse sentido, todos brincam de boneca, mas nem todos são julgados por isso. E isso diz muito mais sobre a sociedade do que sobre quem brinca.


IMAGEM: SRzd

7 Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
Guest
há 5 horas
Rated 5 out of 5 stars.

É prof., meu olhar em relação aos bebês reborn não tinha essa dimensão social, eu tinha focado na dor das mulheres que buscavam no boneco apaziguar um vazio da perda de um filho, ou não poder gerar um ou na infância solitária etc. sua abordagem foi no mínimo instigante, provocante e n nos faz questionadores de nossa própria ignorância e ingenuidade. Sempre um prazer ler seus textos, gratidão professor

Like

Carlos André
há 6 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Excelente reflexão, professor, Everton Carneiro!

confesso que meu olhar não tinha essa dimensão. Percebia esse assunto de forma combativa, até porque tenho visto imagens de mulheres brancas com bonecas brancas. Quem precisa de cuidado em nossa sociedade?

Like

Guest
há 7 horas
Rated 4 out of 5 stars.

Faz todo sentido. Ainda vivemos um patriarcado disfarçado de cuidado. Para o homem tudo tem justifica sem julgamento. Para a mulher sensura e julgamento sem piedade inclusive do próprio sexo. Espero que as próximas gerações consigam reverter essa realidade.

Like

Guest
há 7 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Foi de ampla importância ressaltar o patriarcado como estrutura q reproduz uma lógica de dominação entre os gêneros e tbém a ponderação condizente à produção do desejo. 👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿

Like

Guest
há 8 horas
Rated 5 out of 5 stars.

A abordagem contida no texto é transformadora, pois nos oportuniza perceber o quanto somos dissimulados.

Like
SOTEROVISÃO
SOTEROVISÃO

CONHECIMENTO | ENTRETENIMENTO | REFLEXÃO

RECEBA AS NOVIDADES

Faça parte da nossa lista de emails e não perca nenhuma atualização.

             PARCEIROS

SoteroPreta. Portal de Notícias da Bahia sobre temas voltados para a negritude
bottom of page