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"COISA MAIS LINDA" RE-INVENTANDO O BRASIL

Foto do escritor: Jacqueline GamaJacqueline Gama




Brasil. Anos 1950. Bossa Nova. Rio de Janeiro. Mulheres empoderadas. Esses são os elementos principais do seriado brasileiro, produzido pela Netflix, “Coisa mais linda”. A série virou hype principalmente por causa da temática feminista e os discursos dos diferentes locais em que se fala.


O maior contraponto é a relação de Malu (Maria Casadevall) e Adélia (Pathy de Jesus). A primeira é uma mulher branca, classe média alta, oriunda de São Paulo, já a segunda uma mulher preta, oriunda do morro do Rio de Janeiro, doméstica e com uma família desestruturada. Essas representações das duas personagens denunciam um impacto profundo da colonização brasileira e do poder de concentração do capital estar monopolizado em uma única classe social.


Enquanto Malu quer uma emancipação para abrir o próprio negócio, pois as mulheres não tinham esse direito naquele momento histórico, Adélia já o faz, entretanto, ao ver aquela oportunidade de ser dona de uma casa de show percebe que pode ascender socialmente, algo muito difícil para uma mulher preta periférica ainda nos dias de hoje.


Naquela lógica social as duas lutam por questões diferentes e se a temática da trama é feminismo, ao menos existe um cuidado em mostrar os feminismos plurais, ainda sem usar a palavra feminismo na narrativa, se eximindo de um compromisso ideológico.


A trama é extremamente sútil, apesar de trazer assuntos como violência contra a mulher, feminicídio, independência feminina e a mulher como formadora de opinião, sobre essa última destaco a personagem Thereza (Mel Lisboa) que ao mesmo tempo em que se mostra liberal tem anseios conservadores.


Ela é construída como bissexual, apesar da palavra também não estar presente, tem um relacionamento aberto, é super dedicada ao trabalho de jornalista, uma intelectual, mas ao mesmo tempo anseia por formar uma família nos moldes tradicionais com seu marido.


Pensar em Thereza é fazer um tensionamento da contemporaneidade já que as mulheres vivem nessa terceira margem. Ao mesmo tempo em que querem os direitos iguais aos dos homens, somam esses afetos engendrados culturalmente.


A própria personagem ao decorrer dos episódios em seu comportamento diário se mostra muito mais conservadora do que feminista na sua vida privada. O que reflete no contemporâneo já que muitas mulheres feministas sofrem relacionamentos abusivos e sofrem por amor, logo, a ideologia ou a intelectualidade não blinda ninguém dos afetos humanos.


Outro ponto de contradição. E é possível dizer que essa é uma trama de contradições e de afetos negativos e positivos; é a relação de Adélia com o Capitão que na segunda temporada tem uma reviravolta quando ela se ver apaixonada por um homem branco.


Inclusive esse aspecto da trama foi bem criticado principalmente pela audiência de pessoas pretas já que em geral as produções brasileiras, dentre essas telenovelas e mais recentemente seriados, apresentam uma escassez de personagens negros.Quando os têm esses produtos culturais normalmente põem esses corpos na posição subalternizada. Outro ponto é a não felicidade de um casal afro centrado.


Quanto a esses comentários, a obra realmente tem sido infeliz ao perpetuar um estereótipo para um objeto contemporâneo. Entretanto, o valor denunciativo não deixa de estar inserido tacitamente já que quando ela relata esse padrão social como uma chave para pensar o contemporâneo em que algumas pessoas pretas quando chegam a um status social procuram pares brancos como uma espécie de validação.


Isso obviamente entra em um debate complexo algo que não é minha vivência. No entanto, vale ressaltar que nem todo casal inter-racial é configurado dessa forma só por causa da experiência racial, uma vez que todos temos subjetividades únicas.


Esteticamente, “Coisa mais linda” se destaca pelas cores quentes e as paisagens do Rio de Janeiro. Sem contar a fidedignidade com o cenário e a indumentaria. Mas essa aproximação do real da época também foi assunto controverso, não ao que tange ao material, mas a exposição das vivencias como se não desse alternativa as personagens já que estamos no século XXI algumas coisas poderiam ter sido mudadas, uma espécie de reinvenção do passado já que o próprio passado é uma invenção.


Ao que tange esse conceito de invenção do passado estou compactuando com Roy Wagner em A invenção da cultura, o antropólogo entre muitas coisas diz que inventamos um passado através dos objetos a ele atribuído e das histórias passadas por gerações.


Portanto, retratar um tempo anterior em um objeto artístico sobre essa perspectiva é imaginar esse outro sobre a perspectiva do contexto cultura ao qual se engendra quando foi inventado. Nesse sentido, “Coisa Mais Linda” consegue ser feliz ao imaginar essa trama de mulheres empoderadas já que é algo que faz parte do século XXI, porém ao propagar estereótipos denuncia rachaduras no imaginário social construído que a obra de arte permite. Além de reforçar que valores sociais e enquadramentos de classe e raça persistem no contemporâneo.


Porém, é bom enfatizar que talvez essa não tenha sido a intenção do autor ou essa não seja a interpretação dos espectadores da série, mas é possível ler a contra pelo, para usar um termo Benjaminiano que grosso modo significa ler criticamente e tensionar os fatos e construções da obra de arte.


REFERÊNCIA:

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

Imagem de capa: https://observatoriodeseries.uol.com.br/wp-content/uploads/2020/06/Novo-Projeto-47-1.jpg


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