Olá, meu nome é Thiago Pinho, um monogâmico de esquerda... Ei, espere!!! não saia do texto ainda não. Eu conheço muito bem o peso dessa palavra, seu risco, seu estigma. Quando ela escorre da minha boca, e chega até seus ouvidos progressistas, na sua cabeça a conclusão é meio óbvia:
Esse cara tem algum problema cognitivo, no mínimo: 1) ou ele é burro, faltando aqui o conhecimento necessário sobre como funcionam as engrenagens do mundo ou 2) ele é alienado, o que revelaria estruturas traiçoeiras e invisíveis nos bastidores da sua decisão. Ou, quem sabe, ele também não sofre de alguma espécie de desvio ético doentio? Provavelmente ele gosta de oprimir corpos com algum tipo de exclusividade afetiva sufocante... cristã!!! De qualquer forma, tem algo estranho com esse cara, esse Thiago Pinho. Ele é um progressista? Jamais!!!!
Em outras palavras, não tem como eu sair ileso de um buteco do PSOL, não é? Pelo menos um olho roxo é garantido, certo? Errado e eu posso provar!!! Sem dúvida, “diversidade” é a palavra absoluta nas democracias liberais, uma espécie de farol guiando nossas decisões, não importa o seu tamanho. Não existe principio mais importante do que esse, pelo menos agora, nesses últimos tempos. Não interessa se a diversidade colocada na mesa é epistêmica (verdadeiro ou falso), ética (certo ou errado) ou estética (bonito ou feio)... essa palavra sempre está ali, no horizonte do nosso corpo, nas estrelinhas de cada frase, nos limites da própria significação. Quando se trata de relacionamentos, a coisa segue o mesmo fluxo de uma abertura infinita de possibilidades, reproduzindo as expectativas desse regime político ainda tão jovem, com pouco mais de dois séculos. Se comparado com os 300.000 anos de sua espécie, isso não é nada, concorda?
Em uma mesa de bar com seus amigos do PSOL, se a maior parte tiver as marcas do liberalismo tatuadas na pele, a defesa da monogamia, ou de qualquer instituição (ou ritual) coletivo, nunca pega bem, eu sei... Na verdade, peço até desculpas pelo meu atrevimento, por essa minha heresia dissolvida nessas palavras, mas aqui vou eu... Sem dúvida, o projeto monogâmico tem infinitos problemas, como qualquer sociólogo sabe, mas quero mostrar nesse ensaio que as outras alternativas são um pouco piores, principalmente o que chamam de “relacionamentos fluidos”, “líquidos”, ou seja, sem vínculos sólidos entre as partes. O objetivo desse texto, portanto, não é decidir o melhor modelo, mas qual seria o menos pior, já que todos tem custos enormes, não importa a escolha. Ou seja, bem-vindo à espécie humana!!!!
Além disso, é preciso deixar muito claro três coisas básicas, três premissas nos bastidores de todo esse ensaio: 1) a monogamia defendida nessas páginas pode ser tanto cis (hetero ou gay) quanto trans (hetero ou gay), 2) ela não é sinônimo necessariamente de casamento, assim como 3) ela não é uma crítica absoluta a todas as práticas não-monogâmicas, já que a poligamia, a poliandria e a poliginia, por exemplo, podem conter vínculos longos, sólidos e institucionalizados, ponto principal defendido nesse ensaio. Embora o modelo monogâmico não faça parte de muitas culturas, incluindo sociedades indígenas (Pueblo, Cuna, Koyukon, Araweté) e africanas (Yourubás, Zulu, Massai, Ashanti), todas as suas formas alternativas de regime familiar sempre foram frutos de instituições muito bem estabelecidas, coletivas e até místicas. Em outras palavras, de uma forma mais técnica, o que é criticado aqui nesse ensaio são relações não-monogâmicas fluidas, líquidas, uma característica muito comum do nosso mundo contemporâneo e sua atmosfera neoliberal, como vai ficar claro em breve. Por isso, não quero que você, meu leitor aleatório preferido, distorça minhas intenções, tudo bem?... Vamos lá!!!
O MOTIVO POLÍTICO: A monogamia é uma instituição como outra qualquer. Como todo modelo institucional, ela estabelece regras que organizam a experiência coletiva. Em um universo neoliberalizante, onde tudo o que é sólido se desmancha no ar, com exceção do EU soberano e sua incrível autoestima, a monogamia é o gesto mais poderoso de progressismo, da mesma forma que em um mundo onde reacionários relativizam a ciência, a defesa do campo científico é a atitude progressista mais prudente. Não acredita? Ok, vamos lá!!! Como todas as outras instituições lá fora, do Estado à ciência, passando pela mídia e religião, a monogamia é apresentada como um peso que sufoca as iniciativas privadas de contratos singulares. Em outras palavras, no mundo neoliberal não existem universais, objetividades, ou qualquer coisa remotamente coletiva, mas apenas contratos privados escritos por indivíduos soberanos. Cada um deles determina as cláusulas desses contratos, não cabendo críticas de entes externos ao acordo. “Você quer trepar com três ao mesmo tempo e depois sair trepando com outros por aí? Não tem problema, desde que as partes do contrato concordem. O indivíduo é soberano na decisão, seja ela no campo econômico (direita liberal) ou da cultura (esquerda liberal)”.
Nesse espaço de neoliberalismo amoroso, o outro é tratado como uma mercadoria a ser consumida. Depois que sua validade termina, depois que deixa de preencher minhas expectativas físicas e emocionais, é hora de investir em novas aventuras. No mercado de bens amorosos, opções não faltam. Por isso, ao circular pelos corredores do Shopping do Amor, espantado com suas infinitas opções distribuídas em lindas prateleiras, eu, João Neoliberal da Silva, penso comigo mesmo: “por que perderia meu precioso tempo com uma única pessoa por décadas e décadas, limitando meu poder enquanto sujeito emancipado? Não seria isso uma violência direcionada a mim mesmo, uma imposição vertical de instituições intrometidas, podres? Ou, talvez, uma hipocrisia disfarçada de romantismo?”. O desaparecimento dos rituais coletivos depois de dezenas de milhares de anos, e a chegada dos contratos privados com seu indivíduo como instituição mais poderosa, não é apenas uma marca do neoliberalismo, mas também o centro de um dos livros do coreano Byun-Chul Han.
O MOTIVO MORAL: A monogamia é um ótimo teste de caráter. Pense aí... é impossível conhecer alguém em poucas horas de conveniência semanal, como numa festa, reunião, evento ou banheiro de shopping. Esse OUTRO, na verdade, não é um outro, mas apenas um recorte conveniente, provisório, nada mais do que uma máscara, algo super recortado. A verdadeira prova de fogo é a conveniência prolongada, você ali entre quatro paredes com um corpo concreto, de carne e osso, um pedaço de matéria que grita, fede e ronca. Esse mesmo Outro, já que não é você, muito menos uma extensão de seus jogos desejantes e expectativas autocentradas, se manifesta como um desafio, uma enorme pedra no sapato do seu EGO. Não existe ensinamento mais importante hoje, ao menos nesse mundo neoliberal e algorítmico onde tudo é feito à minha imagem e semelhança, em um circuito de consumo que devora tudo pelo caminho, até mesmo corpos e sentimentos. Em minha vida de criatura monogâmica eu preciso ceder, até mesmo sobre coisas simples como a quantidade de lençol que eu pego na hora de me cobrir. Não parece absurdo e sufocante esses pactos coletivos, esses rituais institucionalizados? Não seria tudo isso algo hipócrita que apenas limita o meu campo de possibilidades enquanto sujeito emancipado? Se isso te incomoda, se causa algum nível de desconforto em seu estômago, você provavelmente é da esquerda liberal. Mas, não se preocupe... como um bom pragmatista, eu não quero julgar o seu caráter, apenas as consequências de suas ações.
O MOTIVO ÉTICO: Nessa atmosfera de um capitalismo afetivo, ao menor sinal de dor de cabeça, quando meu produto para de me satisfazer, eu não conserto... eu troco!!! O custo do reparo é muito grande, em todos os sentidos, o que envolve aqui um alto nível de investimento de energia e tempo. Eu não vou passar anos e anos com o mesmo Iphone, remendando suas falhas no meio do caminho com durex e Superbonder... de jeito nenhum!!! Eu quero a cada compra sentir novamente a fagulha do novo, o tesão do consumo revivido, o orgasmo de um produto 0km (Clique aqui e baixe o app do Tinder). Resumindo, consertar não é a palavra do dia, mas sim a obsolescência programada. Não só produtos, mas relações também carregam em seus rótulos um prazo de validade breve. Olhe agora a testa dos seus ficantes, examine com calma, toque duas vezes no topo e uma frase vai surgir: “expira em março de 2024”. Por isso, não perca tempo, devore ele, ela, elu, elx ou el@ o mais rápido possível, antes que quebre ou apodreça.
O MOTIVO EXISTENCIAL: enquanto você é jovem e a morte é apenas um horizonte distante, uma simples notícia circulando por aí, a monogamia não parece atraente. Pelo contrário, você tem décadas ainda de vida, por que limitar o seu potencial com algemas tão grossas? Vai explorar o mundo menina, vai curtir, vai gozar!!! Mas, na medida em que o tempo passa (e, acredite, ele passa rápido!!), as marcas da biologia começam a corroer meus sonhos emancipados. Se antes pensava na minha carreira, em grandes viagens instagramáveis, agora preciso de alguém caso tenha uma diarreia pesada no meio da noite, ou algum corpo compartilhável disposto a dividir estresses do dia. Se antes o foco era uma boa trepada, ou relações casuais em uma boate de Salvador, agora, com essa pele flácida que me cobre, com esses ossos frágeis que me constituem, quero apenas o conforto de uma série besteirol na Netflix em um dia frio de chuva. Depois de ser a pessoa mais bem sucedida no trabalho, com milhares de likes e uma visibilidade invejável, depois de ter gozado tanto com os prazeres neoliberais, agora só quero um companheiro de viagem nesses últimos quilômetros que ainda me restam nessa estrada da vida... quero uma companhia, só isso.
O MOTIVO PSICOLÓGICO: Como é muito claro em alguns estudos sociológicos clássicos e contemporâneos, com um destaque ao livro “suicídio” de Durkheim, pessoas em relações mais estáveis e duradoras (não necessariamente monogâmicas) tem menos chance de suicídio, de ter depressão, ansiedades ou crises psicológicas mais graves. Eu sei que os neoliberais de esquerda dizem que essa coisa de biologia ou Darwin é estupidez, apenas jogos de poder e linguagem, mas acredite em mim... você é um mamífero, um primata, como qualquer outro. Vínculos sólidos, longos e institucionalizados nunca foram simples opções distribuídas na mesa, muito menos um discurso ideológico dos brancos europeus, mas uma necessidade orgânica, matéria de sobrevivência. Segundo uma pesquisa da University College London (UCL), baseada em uma análise de 812.000 participantes, distribuídos em mais de 17 países, solteiros tem 42% mais chance de desenvolver problemas psicológicos (incluindo até a demência). Segundo Laura Phipps, do Alzheimer’s Research UK, “Os cônjuges podem ajudar a incentivar hábitos saudáveis, cuidar da saúde dos parceiros e dar um apoio social importante”. É preciso calma agora, não confunda as coisas: Esses dados não significam que relações mais sólidas nunca apresentam problemas psicológicos (obviamente, elas têm), mas a pesquisa indica números gerais, pegando uma amostragem de uma população variada. Ou seja, sem dúvida, se fulano vive uma experiência abusiva com ciclano, por mais longa e sólida que ela seja, isso não é garantia de saúde mental, muito pelo contrário. De qualquer forma, o ponto da pesquisa envolve probabilidades, tendências que podem (não necessariamente vão) acontecer.
O MOTIVO ECONÔMICO: Cansado de compartilhar sempre as despesas sozinho? Não tem coragem de pedir dinheiro nem aos membros da sua própria família? Não tema, porque com um parceiro monogâmico todos os custos são reduzidos pela metade. Lembra daquele hotel caro, aquele com a diária de 350 reais? Agora custa 175!!! Lembra daquele carro dos seus sonhos de 50.000 conto, agora custa 25.000. Ou seja, tenha um parceiro monogâmico e ganhe descontos de até 50% em suas compras e viagens. Não parece um bom negócio? Não deu até vontade agora de ser um monogâmico alienado? Diga aí...
Meu leitor aleatório preferido, esse ensaio foi uma costura bem humorada, por isso não leve muito a sério. Na prática, não importa o que você escolhe em sua vida, tudo tem custo. Se viver nas sombras de uma instituição sólida pode ser sufocante (e com certeza é), o outro extremo, apostando em um indivíduo soberano que vive em contratos privados e contingentes, também apresenta desvantagens. Qual o melhor? Eu não sei!!! Embora temos uma tendência de justificar nossas escolhas mais íntimas, principalmente usando manobras acadêmicas, na prática não existe muita certeza de nada. Desejo a você, monogâmico ou não, uma vida de muita felicidade, já que ela é tão curta, tão frágil. Não importa por onde você siga, espero que o pouco de tempo restante no seu caminho seja significativo e sua presença nesse planeta tenha algum efeito em você, assim como nos outros. Tenha um ótimo dia!!!
Referência da imagem: Bing IA
A verdadeira ética, questiona a moral, não é? Porque passa antes pela estética (sensibilidade), pelo que nos toca verdadeiramente.
Boas e honestas reflexões. Acredito que qualquer leitor munido de bom senso é capaz de entender que o ensaio não se presta a pontuar o que é certo ou errado, mas sim propor uma análise corajosa do contexto em que estamos. Cada um com suas escolhas, mas sempre tendo muito cuidado com a superficialidade dos afetos. Parabéns pelo texto.
Sua crítica é voltada a uma lógica relacional que reproduz o liberalismo, mas isso ocorre da mesma forma em pessoas monogâmicas. A diferença entre M e MN é muito mais em admitir ou não a concomitância de relações, mas a qualidade ética, moral, econômica etc que você pontua pode acontecer ou não nos dois modelos.
Pô,Thiago,muito legal seu texto!!! Sarcástico e elegante