Era um Estado abandonado. Largado, miserável, humilhado. Seu povo incrédulo, sedento por melhores condições de vida, passava fome, não tinha empregos e seguia sobrevivendo às custas de um Governo que se reconstruía após quatro anos de guerra intensa - e perdida.
Um Estado que ficou conhecido como a derrota do século. Rechaçado, considerado culpado pela Grande Guerra de 1914 à 1918 que tomou proporções mundiais, foi humilhado e obrigado a assinar o chamado Tratado de Versalhes imposto pelas potências vencedoras: Inglaterra e França, dentro do Palácio de Versalhes.
Lá, seu dirigente, Guilherme II, que há algumas décadas havia sido coroado imperador de toda Alemanha após ter vencido uma guerra contra os franceses, estava agora sendo forçado à extinguir a própria marinha, aviação de guerra e corpo militar; à assumir o custo das dispendiosas dívidas das batalhas contando com a indenização aos seus vencedores; à devolver territórios invadidos e conquistados (dentro e fora da Europa) aos seus governos de origem; e, não menos importante, estava proibido de firmar qualquer tipo de militarização dentro de seu território e de regiões fronteiriças.
Guilherme II assinava o Tratado, na frente de todas as potências econômicas, que lhe responsabilizava por toda a guerra perdida. E, assim, o seu povo começava a vivenciar na pele os custos dessas dívidas, a sentir o gosto da fome generalizada, da falta de empregos, da baixa estima, intensificados ainda mais pela miséria econômica que se alastrava.
Dessa forma, tendo em vista atenuar as próprias penas e as consequências previstas pelos Tratados de Paz, o Imperador do Reich alemão deixou o Estado nas mãos de um governo republicano, que se erguia sob este solo trêmulo e com bases rachadas que, facilmente, poderiam ser infiltradas e infestadas de ideias que puderam submergir e violentar tanto as mentes mais ingênuas, quanto as mais fracas e aquelas já perversas.
Ascendendo em 1918, na Alemanha, a República de Weimar, ao contrário do Reich, era Parlamentarista e regida por uma constituição. Porém, não foi fácil administrar um país ainda em conflito e com fortes sentimentos revanchistas de maneira democrática. Logo em seus primeiros anos de governo, seus dirigentes disputavam a permanência de seus cargos, pois lidavam de frente com as graves consequências instauradas pelo Tratado de Versalhes, especialmente o pagamento das dívidas da guerra, que faziam os próprios incentivos financeiros dentro do país bastantes escassos. Assim, a sua industrialização e renovação econômica ficaram dependentes de fomentos estrangeiros, em especial estadunidenses, por meio dos Planos Dawes e Young.
Para além de terem sido grandes financiadores da Grande Guerra, os EUA lucraram com as importações e investimentos nestes países europeus destroçados e, neste processo, aproveitavam para disseminar o seu famoso “American Way of Life”: modo consumista e capitalista de viver, apoiado em uma forte ideologia liberal, anticomunista e patriótica da época.
Mesmo assim, a retomada da industrialização na Alemanha era lenta e, neste contexto, uma onda de novas ideias e novos valores começava a circular e se disseminar com expressiva velocidade nos mais diversos lugares do território, ameaçando a própria existência da República no país. Nas bancas de jornais, eram cada vez mais numerosos os livros, brochuras, jornais e revistas financiadas por homens de negócios e industriais, organizações nacionalistas antissemitas e antirrepublicanas, que atacavam o parlamentarismo, as instituições democráticas, os judeus, a França e o Tratado de Versalhes. Dessa forma, o uso da propaganda por meio dessa gente começou a se tornar um dos principais instrumentos de alçada política, já que se valiam da ampla circulação e acessibilidade de ideias antidemocráticas impressas.
Com isso, a apelação por um Estado forte, centralizador, racista e messiânico, portanto, aparecia como provável salvação para a crise econômica, como também para o sentimento de revanchismo identitário alemão frente às potências europeias. Em 1929, esse movimento foi ainda mais intensificado, pois neste ano houve o Craque da Bolsa de Valores de Nova Iorque, fazendo com que os investimentos no exterior por parte dos EUA cessassem, e a Alemanha, ainda dependente desses capitais, permitisse, por vias democráticas, a ascensão daquele que se auto clamava como líder supremo, Adolf Hitler.
Em campanha eleitoral, Hitler atacava a República de Weimar e prometia dissolver o Parlamento alemão assim que chegasse ao poder.[1] Além disso, prometia confiscar todo investimento estrangeiro no país, pois segundo a sua ideologia racista amplamente propagada, a compra de produtos agrícolas e industrializados germânicos deveria ser feita somente por seus investidores, para que, dessa maneira, a economia propriamente alemã fosse reerguida sem influência do capital estrangeiro.
O mesmo também aconteceu no campo das ideias. Hitler e seu partido incentivaram a busca pela tradição alemã no campo cultural, artístico e literário. Dessa forma, a ode às raízes germânicas aparecia como uma idealização à vida conservadora a ser atingida em um futuro próximo. Assim, a valorização da própria cultura nacional germânica e ariana implicaria a negação da qualidade de outros tipos de culturas diversas à ela própria, condenando-as por inferioridade moral, ética e étnica. A título de exemplo, a Liga de Combate para a Defesa da Cultura Alemã foi inaugurada e “organizou campanhas de descrédito contra [...] absolutamente todas as obras e os autores que não cantam o ‘sangue e o solo’ alemães, as virtudes ‘germânicas’, a ‘civilização nórdica’. O mito do século XX, do próprio Alfred Rosenberg, onde são exaltados o ariano e o ódio ao judeu, apareceram já em 1931.”[2]
Segundo Arendt, no Nazismo “encontramos a noção de uma ‘seleção [racial] que não pode parar’, e que exige a constante radicalização dos critérios pelos quais é feita a seleção, isto é, o extermínio dos ineptos.”[3] Assim, Hitler partia do princípio de uma hierarquia racial inerente à humanidade, tendo como base as ideias pregressas difundidas pelo Racismo Científico e pelo Darwinismo Social durante o século XIX. Esses movimentos defendiam a falsa tese de inferioridade dos povos não-europeus, marcados pela raça, em detrimento de uma suposta superioridade dos caucasianos brancos. Essas teorias, inclusive, serviram como justificativa para práticas de invasão, violência e genocídio contra esses povos.[4]
Dessa forma, Hitler e seus apoiadores, quando assaltaram o poder na Alemanha, disseminaram a ideia de que eles eram os povos dominantes e, por conta disso, tinham o poder de subjugar aqueles entendidos como inferiores. Com isso, o extermínio desses seres humanos, considerados como um atraso ao desenvolvimento de uma raça superior na Terra, foi prática recorrente para uma verdadeira “limpeza racial e étnica iniciada pela Alemanha”.
Para isso, trataram de construir campos de concentração em vários lugares da Europa, algo que não era novidade para eles, pois o Estado alemão já havia utilizado esse sistema em sua antiga colônia, a Namíbia, durante o século XIX. Nesses Campos, as pessoas entendidas como inferiores eram previamente sequestradas de seus locais de origem e enviadas para trabalharem em condições exaustivas, sendo aprisionadas e vítimas de todo tipo de perversidade. A polícia nazista (SS) assassinou bebês, crianças, adolescentes, jovens e idosos. Seus soldados e oficiais estupraram, agrediram e torturaram. Seus médicos e enfermeiros praticaram experimentos dolorosos e inimagináveis. O povo fanático aplaudiu, ovacionando, apoiando.
Durante o Colonialismo e o Imperialismo, como afirmou Aime Cesaire, a prática de extermínio em massa já era aplicada pelos europeus a povos racializados: africanos, indígenas, aborígenes, etc. mas durante o Nazismo, essas mesmas práticas estenderam-se a comunidades europeias: judeus, ciganos, pessoas com deficiência física e/ou mental, poloneses, comunistas, afro-germanos, Testemunhas de Jeová, homossexuais e divergentes de seu regime. Assim, com um número maior de pessoas europeias incluídas no rol de “racialmente inferiores”, é disseminada a ideia de que o holocausto foi o primeiro extermínio propagado por meio de Campos de concentração da História. Mas não podemos esquecer que o que Hitler fez foi, salvaguardando as devidas proporções, aplicar a povos europeus as mesmas práticas de extermínio que já eram utilizadas em povos que viviam na África e na Ásia.
Nesses locais, inclusive, há diversos episódios sangrentos que até hoje não foram considerados como genocidio. O caso da Namíbia, citado anteriormente, é um ótimo exemplo disso: mais de 70% de sua população foi dizimada e colocada em campos de concentração pela Alemanha imperial. Mas até hoje esse episódio não é encarado como um extermínio, tal como foi o Holocausto. Uma razão para isso, explica Cesaire, é a estrutura do sistema imperialista presente até hoje, que considera a prática colonial aplicada a povos europeus, um extermínio; mas a prática colonial aplicada a povos racializados, uma circunstância do passado.
Sendo vítimas dessas ideias chauvinistas, patrióticas, racistas e antissemitas veiculadas por uma concepção torpe de “luta racial” como algo inerente à natureza do ser humano, mais de 7 milhões de pessoas foram exterminados em Campos de Concentração ao longo da Segunda Guerra Mundial, instaurada logo após o assalto de Hitler ao poder. Além disso, a propaganda que era veiculada pelo seu governo sustentava a ideia de que a Alemanha estava se reerguendo, industrializando-se, militarizando-se, fazendo de seus soldados, homens e mulheres que formavam o corpo da milícia e do departamento de propaganda Nazista, os verdadeiros heróis e heroínas da Pátria.
Porém, em paralelo com o avanço nacionalista e antissemita desse partido de extrema direita - sim, o Nazismo é um partido totalitário de extrema direita, pois além de exterminar comunistas, era a favor da propriedade privada e contra o Internacionalismo propagado pela Internacional Socialista - havia um movimento artístico e intelectual notório da esquerda na Alemanha, mas que ao longo dos anos subsequentes à derrota na Primeira Guerra, começou a sofrer repressões da classe dominante e capitalista alemã.
Aos poucos, a experiência artística fugidia e subjetiva, como o Expressionismo alemão, foi dando lugar a uma mostra que tinha a experiência real e brutal da realidade como princípio artístico. Sendo encorajado por escritores e pintores comunistas que se aproximavam do campo revolucionário, sabiam da perseguição que se iniciou pelos acadêmicos contrários ao regime, mas permaneciam com o objetivo de mostrar como a ideologia nazista estava sendo manifestada na prática da pena de morte e na educação das crianças. Queriam demonstrar, por meio das artes, como o atual regime estava deteriorando a sociedade. Multiplicavam-se, assim, as peças de teatro que tratavam sobre o aborto e os livros que relatavam experiências diretas e cruas da guerra, ambas como uma forma de de tentar disputar o campo ideológico com as ideias fascistas já instauradas.[5]
Polarizada, a Alemanha convivia com duas forças antagônicas que lutavam pelo poder: uma completamente perversa e que estava causando extermínio de grande parte da população, e outra que tentava conter o seu avanço para o restante do mundo. Neste sentido, o silêncio de potências como França, Inglaterra e Estados Unidos, quando Hitler começou a invadir territórios e proclamar a sua ideologia de extermínio, foi reflexo da luta já presente entre capitalismo e comunismo. Pois, não podemos perder de vista que essas eram potências aliadas ao sistema capitalista e viam, neste avanço nazista, a possibilidade de conter a disseminação de ideias vindas da URSS para os seus polos sociais, políticos e econômicos.
E, assim, o fascismo nasceu e se alastrou em um período curto, em menos de 30 anos, para fora da Alemanha. Tendo sido primeiramente visto na Itália e, posteriormente, vivido pelos portugueses com a Ditadura de Salazar e, pelos espanhóis, com a Ditadura de Franco, no caso alemão, a partir do estímulo da coação física e dos ideais intelectuais, artísticos e culturais, a ode ao bucolismo germânico e as teorias raciais faziam nascer, intensificar ou, até mesmo, mostrar, o Hitler interno que vivia, escondido, esperando para nascer, em cada um de seus apoiadores. Não eram máquinas de guerra, grandes serial killers. Era gente do povo: militares, comerciantes, lavadoras, soldados, intelectuais, banqueiros, profissionais liberais, pais que ensinavam às suas crianças, pessoas de diversas cores e ocupações que puderam, ou se deixar influenciar por essa teoria, ou talvez dar vazão às ideias racistas que já existiam dentro delas.
Precisamos parar de pensar que o fascismo só ficou restrito às tropas armadas, àqueles e àquelas que torturaram, fizeram experimentos violentos e assassinaram milhares de pessoas. Pois, até chegar neste ponto, foram muitos e muitas que beberam dessa fonte: estimularam os próprios preconceitos a partir de ideias retrógradas e pseudocientíficas; elegeram um inimigo a ser combatido, exterminado; perseguiram a ciência e os primeiros a serem assassinados foram os professores, acadêmicos e intelectuais que eram contra o regime fascista; acreditaram, sem questionar, que havia diante de si um líder enviado por Deus, um verdadeiro Messias, que por mais que pregasse algumas ideias radicais e exterminasse milhares de seres humanos, por fim era alguém que defendia a Pátria Alemã, a Família, os bons costumes e o trabalho como salvação de um povo.
E não. Qualquer semelhança com a realidade brasileira de 2022, não é coincidência. É fascismo. É violência. É política de extermínio.
Deve ser combatida.
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Imagem I - Foto: Em outubro de 1938 o jornal nacionalsocialista Völkischer Beobachter publicava a imagem abaixo, pouco depois da ocupação nazista dos Sudetos, explicando que "retratava a intensa emoção de alegria dos habitantes daquela região quando os soldados de Hitler cruzaram a fronteira em Asch e percorreram as ruas da cidade de Cheb". Por outro lado, os Arquivos Nacionais Norte-americanos mostram a seguinte fotografia com o seguinte comentário quando foi publicada na revista Time Magazine: "A tragédia desta mulher dos Sudetos, incapaz de ocultar sua miséria ao mesmo tempo em que obedientemente saúda o triunfante Hitler, é a tragédia de milhões no silêncio, que estão sendo "levados" para o hitlerismo com o uso da força implacável.
Referências
[1] https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/film/hitler-campaign-speech [2] RICHARD, Lionel. “Clima intelectual”. In: A República de Weimar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 251 [3] ARENDT, Hannah. “O totalitarismo no poder”. In Origens do Totalitarismo: São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 529 [4] Para ler mais sobre este assunto: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/victims-of-the-nazi-era-nazi-racial-ideology [5] RICHARD, Lionel. “Clima intelectual”. In: A República de Weimar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 258
Não entendi o final . . ."Qualquer semelhança com a realidade brasileira de 2022, não é coincidência. É fascismo. É violência. É política de extermínio. " O que houve, realmente, de fascismo em 2022? Campo de concentração ocorreu/ocorre a partir de 8 de janeiro, no Brasil!!!
Que aulão! Sobre a questão da Namíbia, lembrei de uma influenciadora preta que comentou que toda vez q vc vê uma situação e tive dúvida se foi racismo, imagine aquilo sendo feito com judeus. Infelizmente, as pessoas rapidamente entendem o preconceito quando se fala de uma cultura não-preta....
Descreveu amiúde como as coisas chegaram onde chegaram e como isso pode ocorrer em outros locais,épocas e contextos diferenciados