Ei, “você apoia Israel ou Palestina?”, pergunta seu tio Cléber em um almoço de domingo com sua família, enquanto todos assistem algum programa de TV aleatório. Diante desse clima tenso, mas ao mesmo tempo prazeroso, uma energia estranha percorre seu corpo, atravessa suas cordas vocais e finaliza em um fluxo de significantes muito bem estruturado. Seu tio gostou da sua resposta? Pouco provável, mas não é esse o ponto do nosso ensaio de hoje... não tenho interesse no seu tio, nem mesmo conheço o cara. O que me interessa é outra coisa, outro detalhe, talvez despercebido por vossa excelência, meu leitor... Se esse almoço acontecesse nas décadas de 50 e 60, a resposta seria óbvia, certo? Pessoas de esquerda apoiam países sufocados pelo imperialismo capitalista, em um gesto clássico de resistência aos ataques yankees. Como efeito dessa moldura sólida de possibilidades, nenhum traço de dissonância cognitiva assombrava nossas mentes, nem mesmo por um breve instante. Mas e hoje? Talvez a realidade ganhou tons complexos, muito além do tradicional branco e preto de épocas mais sólidas, mais previsíveis.
Não sei se você percebeu, mas o cenário de circunstâncias em torno de Israel e Palestina é um pouco diferente de outros momentos, em outros conflitos históricos. Compare o acontece hoje em Gaza com a Guerra ao Vietnã, conflito arrastado por vinte longos anos, um completo desperdício de dinheiro, vidas e energia, tudo isso em nome dos Estados Unidos e seu pacotinho de valores democráticos e liberais. Quando o assunto eram os integrantes da esquerda, o apoio ao Vietnã era quase inevitável, sem qualquer tipo de ambiguidade nas entrelinhas desse suporte. Se o critério no conflito entre Israel e Palestina fosse apenas “classe”, nada mais do que uma resistência ao imperialismo de um dominante capitalista, o cenário de decisões políticas seria muito simples, como sempre foi, principalmente durante a Guerra Fria. Com o fortalecimento da esquerda liberal ao longo das décadas, acompanhado de seus infinitos parâmetros de valores e avaliação, os contornos da pintura política parecem complexos, transbordantes, meio ambíguo, como se fosse uma mistura estranha de Pollock e Marx, ambos em um mesmo liquidificador progressista.
A palestina é conhecida como um espaço anti-lgbtpqapn+, com instituições religiosas solidas, verticalizadas, cenário completamente oposto ao mundo ocidental com seu indivíduo como instituição absoluta, soberana. Você que acredita no gênero como uma instância privada, apenas um produto de um sujeito empoderante em seus múltiplos circuitos performáticos, com certeza entraria em choque com a seguinte constatação: nem todos os países do mundo seguem o liberalismo da sua democracia. Eu sei... foi assustador o que eu disse agora!!!
Tome aqui 20 segundos, vou esperar um pouco. Vá beber uma água, respire fundo...
Melhorou? Ótimo...
Piorando ainda mais a dissonância cognitiva no meio disso tudo, vários grupos lgbtqiapn pedem refúgio a Israel, na esperança de escapar da morte e das repressões em terras palestinas. Em um dos programas da BBC, outlook, um dos entrevistados
[...] foi um jovem homossexual de 22 anos, que saiu de Gaza há quatro anos e quase foi morto quando sua família descobriu sobre sua opção sexual. Meu irmão me viu com um namorado e veio nos bater com uma vara", contou. "Ele nos amarrou com arame, chamou meu pai e o pai do meu namorado. Depois nos bateu de novo." O jovem disse que conseguiu fugir, com a ajuda da mãe e da irmã. Quando descobriu que seu pai estava atrás dele, fugiu para Israel
Mas e agora? Existe alguma contradição entre a recusa das investidas imperialistas norte-americanas, personificadas por Israel, e o apoio à Palestina e seus vários tipos de fobia? Por incrível que pareça, não existe problema nenhum nesse cenário nada hipotético, já que identidades são flexíveis e nunca formam um sistema coerente, pelo menos não por muito tempo. Na prática, é quase impossível definir qual parâmetro identitário participa dos contornos subjetivos de um certo indivíduo, quais ingredientes colaboram em um processo de subjetivação específico, como diria Foucault. É como um jogo de identidades, uma espécie de poker liberal. Sem dúvida, nós temos várias estratégias na cabeça, de manobras elaboradas até truques baratos, mas quem sabe como o crupiê do acaso distribui suas cartas? Em outras palavras, na feijoada da sua existência, qual ingrediente se destaca, qual deles faz o público salivar?
Queers pela Palestina
A defesa da palestina por indivíduos progressistas, e até mesmo um certo flerte radical com o HAMAS (e acredite em mim... é muito mais comum do que você imagina), pode descartar qualquer tipo de vínculo com gênero, ou outro marcador identitário, mantendo apenas nos bastidores um critério de classe, ou seja, um vínculo geopolítico, anti-imperialista e até decolonial, como alguns PSOLeiros sugerem. Nesse espaço simbólico especifico, gênero não é um parâmetro relevante, embora essa regra não se aplique em outros circuitos, onde sua presença ganha muito mais protagonismo. Portanto, a pergunta continua... qual critério, ou critérios, identitários estruturam uma certa matriz de subjetivação? E a resposta é: “depende”. Não existe uma alternativa certa, nem mesmo um traço leve de certeza, mas um campo bem variável de remodelagens, um espaço mutante e contraditório de caminhos possíveis. “Façam suas apostas!!!” é a mensagem estampada nos portões da fortaleza liberal.
Por incrível que pareça, o mesmo acontece com o famoso “pobre de direita”. Eu sei... diante dessa minha comparação estranha, talvez inédita nos seus bastidores, uma pergunta explode da sua boca: “Como assim uma pessoa pobre pode ser conservadora, se a defesa dos seus interesses de classe (gênero ou raça) é um presente do progressismo?”. Eu entendo o choque, parece estranho, mas faz sentido, principalmente porque classe[1], gênero e raça (o tripé de qualquer progressista), podem desaparecer na panela identitária do meu vizinho. Outros ingredientes, como religião, cultura, língua, além de centenas de outros, acabam engrossando o caldo da minha feijoada metafórica. Por esse motivo, não existe nada de estranho ou bizarro quando indivíduos apoiam Bolsonaro, ou até Elon Musk, a não ser que certos critérios identitários sejam reificados, convertidos em essências ou algum subproduto metafísico qualquer. “Como assim pobres apoiando um bilionário?”, pergunta João ou “Como assim gays apoiando uma região homofóbica?”, pergunta José. Aos seus olhos, existe uma identidade fixa que deveria ser honrada a qualquer custo (classe, na primeira, e gênero, na segunda), mas nada é tão simples assim. Nesse sentido, o abraço de Jojo Todynho e Michele Bolsonaro apenas parece absurdo quando a “raça” é essencializada, como se a cor da pele fosse o centro do seu circuito identitário, o que não é tão óbvio quanto imaginam. Na dança das identidades, ninguém sabe ao certo o ritmo da música, nem por quanto tempo ela permanece ligada. Como o indivíduo é uma rede intersecional flexível com suas identidades sempre abertas a múltiplos arranjos, outro critério identitário pode assumir o controle, como a religião, no exemplo de Jojo Todynho.
Uma negra e uma branca se abraçando? (Pergunta a esquerda identitária).
Nada disso... duas evangélicas se abraçando!! (Responde a direita identitária).
Sem dúvida, a nossa experiência civilizatória, assim como nossa luta política e circuitos acadêmicos de pesquisa, aparentemente conferem mais importância a certos critérios identitários do que outros, mas ainda assim é impossível definir qualquer esquema rígido. Seguindo o cliché típico de qualquer sermão de mãe, ressoando uma virtude empírica importante nos bastidores da própria ciência: “cada caso é um caso”. Por exemplo, Kamala Harris, mulher negra empoderada e filha de imigrante (uma receita quase infalível na panela democrata), parece enfrentar nos últimos tempos muitas críticas internas por causa do seu apoio à Israel, com direito até a manifestantes pró-palestina interrompendo um dos eventos com bomba de fumaça, e até por suas críticas à Israel (afinal, a comunidade judaica nos Estados Unidos é enorme, famosa e progressista). Embora tente agradar todos, todas e até todes, o campo de complexidade parece intenso demais, escorregadio ao extremo, sendo impossível permanecer nos limites convenientes de alguma caverna identitária. Isso significa que o critério “geopolítico” ou até mesmo religioso fala mais alto do que qualquer outro parâmetro, pelo menos naquela circunstância, naquela partida específica de poker identitário. Sem dúvida, o desejo de derrotar Trump é absoluto, o que revela ainda um poderoso compromisso progressista com Kamala, mas não se enganem... esse compromisso é cercado por uma névoa densa, um clima profundo de desconfiança. Eu mesmo conheço uma militante norte-americana do movimento negro que confessou a mim, no início de setembro, suas suspeitas com Kamala, apesar de reconhecer nela uma mulher negra e imigrante.
Em outras palavras, as pessoas são complexas, contraditórias, estranhas, no limite do incompreensível, como é comum em qualquer arranjo social imaginável. Como diria Alfred Schutz, temos sorte de enxergar o mundo e a nós mesmos com coerência, embora “coerente” seja um adjetivo muito escorregadio. Ele é menos um dado explicito aguardando na superfície do mundo, e muito mais uma pretensão confortável em circuitos fenomenológicos. Em outras palavras, “coerência” é uma premissa que organiza meu campo experiencial, ao invés de uma descoberta óbvia extraída nas profundezas das circunstâncias. A realidade não é coerente, muito menos eu, mas essa ilusão alimenta cada centímetro do meu dia, oferece um ótimo incentivo em tempos muito complexos.
[1] A classe não é, em si, um conceito identitário, mas pode ser interpretado dessa forma, principalmente pela esquerda liberal ou por linhagens mais culturalistas do marxismo, como acontece com o próprio Pierre Bourdieu.
Muitas indagações a se pensar,Thiago. No entanto,há uma confusão entre Gaza e Hamas. A população palestina sofre com a brutalidade do Hamas e de Israel,ambos. Mas só um lado é criticado.