INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: a única face da moeda
- Valéria Pilão
- 28 de mar.
- 4 min de leitura

No período de uma semana, duas notícias produzidas e divulgadas pela chamada grande imprensa me chamaram a atenção: a primeira, divulgava a insatisfação dos dubladores humanos com o programa utilizado pela Amazon para dublagem realizada por Inteligência Artificial (IA)[i] e, a segunda, descrevia uma entrevista de Bill Gates na qual afirmava “que os humanos não serão mais necessários ‘para a maioria das coisas’”[ii].
Em comum entre essas notícias é a aparente obsolescência humana frente o desenvolvimento das tecnologias informacionais, em especial, as denominadas Inteligências Artificiais. Bill Gates, filantropo de primeira ordem[iii], assevera que muitas profissões serão substituídas pela IA e dentre elas cita diretamente a medicina e a educação.
Para nós brasileiros, há algum tempo, vemos na educação um processo de plataformização do ensino, com a utilização de IA para a produção de materiais didáticos com os professores, na melhor das hipóteses, tornando-se “curadores” dessas ferramentas educacionais. Da mesma forma que verificamos a produção de aulas gravadas, utilizadas por longos períodos e reproduzidas para centenas de milhares de estudantes sem o devido pagamento do criador do material.
A precarização do trabalho docente e a desvalorização de sua hora/aula é algo consolidado na educação brasileira. Seja na educação pública com suas precárias infraestruturas, seja na educação privada com a superexploração, o trabalho do educador expressa um contundente projeto educacional cuidadosamente implementado ao longo de décadas de fragilização e enfraquecimento da luta dos professores por melhores condições de trabalho bem como de qualidade educacional.
O desenvolvimento das tecnologias informacionais e as recentes IAs se somaram a esse processo de precarização das condições docentes como um todo. Surpreende, no entanto, pelo menos no caso brasileiro, que uma profissão consolidada como elitista por ser predominantemente de brancos e membros de classes mais abastadas, sofra algum risco de precarização. Seguindo as pistas apontadas por Bill Gates que não podem ser desprezadas, afinal, estamos falando de um dos homens mais ricos do mundo, aparentemente não há mais setores profissionais seguros.
Soma-se a esse indicativo de intensificação da precarização do trabalho bem como de substituição de mão de obra humana, a notícia relatando que a plataforma Amazon, diga-se de passagem, que também pertence a um dos homens mais ricos do mundo, Jeff Bezos, utilizou de forma experimental a inteligência artificial para dublar filme de origem espanhola para o português.
Segundo a proposta da empresa, emitida por Rafael Soltanovich, vice-presidente de tecnologia da Prime Video e da Amazon Studios: “acreditamos em melhorar a experiência dos clientes com inovação prática e útil de IA”, ele continua, “[...] estamos ansiosos para explorar uma nova forma de tornar as séries e os filmes mais acessíveis e agradáveis”[iv].
Essa citação apresenta a meu ver um dos engodos contemporâneos mais recorrentes, pois, escamoteiam a realidade com profundidade. Afinal de contas, quem terá coragem de se colocar contrário e fazer críticas a ampliação de acesso às diferentes produções cinematográficas?
Os trabalhadores dos setores têm se manifestado de maneira contundente para limitar o uso de IA nas dublagens, mas o mercado (entidade propositadamente sem sujeito e sem classe historicamente determinada) não se importa em ouvir essas reivindicações. Inclusive, uma suposta “democratização de acesso” tem sido a justificativa recorrente para a substituição de mão de obra humana por IA, em detrimento de setores trabalhistas.
Quando vejo textos e discursos que se utilizam do estratagema “democratização de acesso” relacionadas a utilização das tecnologias informacionais e automação, recorrentemente, leio nas entrelinhas: intensificação das formas de exploração do capital e o aumento de sua acumulação.
Devemos sempre relembrar a origem das tecnologias informacionais: sua origem é como tecnologia de guerra, tendo sido, posteriormente, introduzida nos processos produtivos e, por último, em nossa vida cotidiana. Em menos de um século, as tecnologias informacionais se desenvolveram de maneira aceleradíssima associando ciência e tecnologia e aumentando as margens da acumulação de capital bem como criando novos mercados.
Não nos enganemos, as tecnologias informacionais desde o seu início foram pensadas e implementadas como forma de intensificação da acumulação do capital. Nunca foi para a libertação do humano e o desenvolvimento de suas potencialidades.
As precarizações das relações trabalhistas identificadas acima entre os professores e dubladores e, potencialmente, entre médicos é o fim último de toda tecnologia informacional desenvolvida nesse sistema social. Portanto, não se trata de uma consequência aleatória, mas ação com intencionalidade para que as margens de riqueza se incrementem.
Se existe algum potencial libertador nas tecnologias informacionais, ele não está na sua concretização irrefletida na vida cotidiana, mas no conhecimento acumulado. Por ora, resta-nos sair de uma suposta zona de conforto na condição de consumidores e realizarmos análises mais profundas sobre a sociedade em que vivemos.
Afinal de contas, para consumir precisamos de dinheiro que como trabalhadores somente adquirimos ao vendermos de alguma forma nossa força de trabalho, mas, se Bill Gates tem razão e que os trabalhos humanos tendem a ser pouco a pouco substituídos pela IA, fica a pergunta: como consumiremos?
Ou seja, levando em consideração que já temos atualmente uma parcela reduzida da população com poder de consumo, é provável, que esses setores fiquem ainda mais reduzidos com o aumento das desigualdades sociais. É sempre importante dizer: o Brasil, país de desigualdade social racializada, tende a acentuar as diferenças entre brancos e não-brancos, entre quem consome e quem pouco consome ou não consome. Parece-me urgente que comecemos a desmistificar as tecnologias, buscando suas origens e o papel social que cumpre nessa sociedade na expectativa de transformações que de fato propiciem acesso igualitário à riqueza produzida.
FONTE:
[i] https://www.estadao.com.br/cultura/cinema/dublagem-uso-de-inteligencia-artificial-pelo-prime-video-reacende-debate-especialistas-analisam/?srsltid=AfmBOoou0yDWvp4X6InO8xdgYo30MzaX7xZEo2YmeEkoPriCbZtYABwp
[ii] https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2025/03/28/bill-gates-diz-que-ia-vai-substituir-medicos-e-professores-em-menos-de-10-anos.ghtml.
[iv] Extraído de: https://www.estadao.com.br/cultura/cinema/dublagem-uso-de-inteligencia-artificial-pelo-prime-video-reacende-debate-especialistas-analisam/?srsltid=AfmBOoou0yDWvp4X6InO8xdgYo30MzaX7xZEo2YmeEkoPriCbZtYABwp.
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