Já há algumas décadas, vem surgindo movimentos – em especial nos meios acadêmicos e literários, e mais recentemente na arte e na cultura – que contestam um único pensamento, um valor universal, uma modalidade de reflexão. Esse conjunto conceitual é conhecido por perspectiva decolonial, lançando olhares que se desprendem de velhos cânones, partindo de intelectuais e pensadores dos chamados países periféricos ou que tenham ligações étnicas com esses locais. Frantz Fanon, Milton Santos, Grada Kilomba, Ângela Davis, Chimamanda Adichie, Bell Hooks... Minorias ou colonizados, estão aí abordando visões outras. Como falei, estava em um campo das artes, letras, e palavras, mas não é que agora chegou no futebol?
Essa Copa do Mundo do Catar pode ter exposto muito mais do que belas jogadas e gols bonitos. Fora as discordâncias sobre o país sede e seu desrespeito aos direitos humanos, dentro das quatro linhas foi mais realçado do que nunca a torcida para países colonizados e seus confrontos com os seus colonizadores e imperialistas. Indo mais além, entrou em pauta novas conformações no debate sobre as diversas maneiras de jogar.
Sempre torcemos pelo “time mais fraco”, geralmente é assim quando uma competição dessa é acompanhada. Mesmo sabendo do pouco sucesso, vibramos quando zebras acontecem. Porém, dessa vez a palavra “colonizados” ficou mais evidente ainda. Nesse campo, não entra apenas fracos, mas escolas de futebol tradicionais situadas abaixo da Linha do Equador, como a nossa arquirrival Argentina, finalista da Copa.
Antes de falar dela, muito comentado nas resenhas esportivas sobre o torneio o destacado futebol arrojado de seleções sem histórico favorável em copas. Arábia Saudita, Camarões, e a sensação Marrocos foram elogiadas por apresentarem esquemas interessantes de jogo e derrubarem campeões mundiais. Então não é apenas torcer pelo “mais fraco”, mais saber que colonizado não respeita mais o colonizador. Tá, em todas as copas têm isso, porém, tá parecendo que aquela posse de bola volumosa, aquele toquinho pra lá e pra cá, e um domínio na proposição de jogo perdeu terreno e quem apostou nisso se deu mal. Com isso, pode estar havendo tendência de um jogo mais eficiente e mais objetivo, como vem mostrando a seleção marroquina, primeiro africano e também primeira nação árabe a chegar com chances claras de ser finalista.
E o decolonialismo dos gramados está aí: uma “linguagem” que expressa nenhum temor ou reserva em enfrentar um adversário com maior recurso tático. Ou parte pra cima ou vai ficar eternamente nesse remi-remi do “mais fraco”. Não é mais fraco, é agora colonizado, que vai buscar o que lhe foi tomado! Boa parte das seleções europeias são compostas por jogadores que nasceram ou tem origem fora de lá. Marrocos mostrou a lei do retorno: 14 marroquinos da seleção nasceram na Europa e estão atuando na seleção de seus ancestrais. Ou seja, bateram no peito se dizendo colonizados e partiram pra cima.
E foi essa palavra que ouvi muito por aí, na mídia, na rua, em algumas colunas: colonizados. Pode ser que na próxima copa, alguns garotos sonhem em atuar pela Inglaterra, França, ou Alemanha... ou voltem as vistas pra sua história, suas origens, seus familiares e retomem a diáspora pra casa.
E nossos Hermanos colonizados ganharam uma torcida nunca vista por aqui. Nunca vi tanta gente aqui no Brasil vibrando com o futebol argentino. Em muito, por jus a Messi, jogador fenomenal, que nunca foi celebridade, nunca se envolveu em grandes polêmicas extracampo, se lesiona muito pouco, não se envolve em brigas e confusões durante a partida, nem me recordo se ele alguma vez foi expulso! Jogando na Espanha desde garoto, os argentinos nunca o identificaram como um dos seus. Não era decisivo nos jogos da seleção e nem sabia cantar o hino direito. Eis que nos últimos anos “virou argentino”, passou a ser decisivo, e tal qual como Maradona em 1986, tem sustentado as atuações argentinas, deixando de lado resquícios do colonizador espanhol . É agora ídolo, tem identificação com seu povo e quer muito levar o tricampeonato pra eles. Daí a “Messimania” em nome do simpático jogador. Por tudo isso, ele tá merecendo esse título junto a seus companheiros, viu? Mais uma mostra da torcida colonizada: não adianta boas atuações, mas garantir a batalha em campo como a libertação do seus patrícios do julgo imperialista.
Particularmente, não consigo torcer pra Argentina, mas reconheço que eles dificilmente vão deixar escapar esse título. Homenagens a Maradona, superação de problemas internos, torcida apaixonada e dedicada, Messi “comendo a bola”, toda felicidade de Mafalda e sua turma. A própria seleção está menos soberba que nas edições passadas, quando subestimavam adversários, agindo na maior empáfia. Tudo indica que nesse domingo, boa parte da Latino América se tornará uma imensa Buenos Aires.
E foi bem isso que aconteceu! Meus vizinhos vibraram pela Argentina e minha irmã estava torcendo por eles e por Marrocos. Texto incrível! A cara do Brasil.
Valeu Thiago! Olha.....a copa revela muita coisa,problemas no país sede,algum drama envolvendo países,conflitos internos....então isso é típico de um torneio grandioso que chama tanta atenção e futebol sempre descamba para alguma polêmica. São visões sobre o evento. Mas se os diversos campos sociais perdem espaço para o teor político é algo a se refletir
Muito bom o ensaio, Carlos. Bem interessante o texto. Fico pensando sobre algumas coisas que você comentou. Será que o campo político hoje não foi longe demais? Parece que todas as outras esferas, como a ciência e a arte, perderam muita autonomia ao campo político, e agora o futebol. Em vez de ser uma simples experiência ingênua, um breve momento descontraído com amigos e familiares, um jogo de futebol se tornou um objeto a ser investigado e debatido Talvez Giddens tinha razão, talvez o mundo agora é "hiperracionalizado". Você acha que isso prejudica a experiência do torcedor ou, na verdade, potencializa? Ou, talvez, todo essa visão decolonial não altere muito as coisas, já que continuamos na mesma matriz de qualquer…