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PALESTINA E SALVADOR


*Everton Nery


O Evangelho de Mateus 2.1 afirma que: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram uns magos do oriente a Jerusalém.” Algumas perguntas aqui fazemos: Onde fica Belém da Judeia? Quem é Herodes?

Belém da Judeia (também chamada de Belém de Judá) é uma cidade histórica localizada na região da Judeia, no atual território da Cisjordânia, próximo a Jerusalém, estando na região conhecida por Palestina. A cidade moderna é conhecida como Bayt Lahm em árabe, que significa “Casa do Pão”, assim como "Belém" em hebraico (Beit Lehem). Assim entendemos que quem nasce na Palestina é um Palestino, ou seja, de certa forma, aquele nascido na “Casa do Pão”. Que metáfora inquietante e divina!


Já Herodes, mais especificamente Herodes, o Grande, foi um rei da Judeia que governou com o apoio do Império Romano de 37 a.C. até 4 a.C.. Ele é uma figura histórica e também bíblica, sendo de origem edomita (descendente de Edom, povo vizinho de Israel), tendo sido nomeado rei da Judeia pelos romanos, com forte apoio de Marco Antônio e depois de Otaviano (Augusto César), sendo conhecido por seu governo autoritário, grandes projetos arquitetônicos e por seu papel na narrativa do nascimento de Jesus, conforme o Evangelho de Mateus 2, no episódio da visita dos magos do Oriente ao menino Jesus. "Vendo-se iludido pelos magos, enfureceu-se Herodes grandemente e mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo, conforme o tempo do qual com precisão se informara dos magos." Mateus 2:16 (ARA):Segundo o texto bíblico, ao saber do nascimento do “Rei dos Judeus”, Herodes se sentiu ameaçado e ordenou a chamada “matança dos inocentes”, em que todos os meninos com menos de dois anos em Belém deveriam ser mortos.


Dito isso, passamos agora a Salvador. Esta cidade, fundada em 1549, foi chamada de Cidade do Salvador, em homenagem a Jesus Cristo, o dito Salvador do Mundo, seu padroeiro. Daí a tradução grega do nome para compor o gentílico. Vamos entender isso!


Quem nasce em Salvador, capital da Bahia, é chamado de soteropolitano por conta da origem grega e latina da palavra, que foi usada na hora de "latinizar" o nome da cidade. O termo soteropolitano é formado pela junção de duas palavras de origem grega: “Soter” (salvador, redentor) e “Polis” (cidade). Juntas, elas formam: “Soterópolis” (cidade do Salvador). E o sufixo latino “-ano” é adicionado para formar o gentílico “Soteropolitano” que significa natural de Soterópolis (Salvador).


Por que não “salvadorense” ou “salvadoriano”? Embora pareçam mais naturais na língua portuguesa, esses termos não foram adotados oficialmente. O nome Soteropolitano foi cunhado com base na tradição erudita e acadêmica da época colonial e imperial, quando era comum a utilização do grego e do latim para dar nomes "cultos" a cidades e seus habitantes.


A partir da intersecção entre as narrativas bíblicas e a realidade histórica contemporânea, torna-se possível construir uma reflexão crítica sobre os horrores da violência contra crianças — símbolo da inocência, da fragilidade e da promessa de um futuro. O Evangelho de Mateus relata que Herodes, tomado pelo medo de perder seu poder ao saber do nascimento de Jesus, ordena o assassinato de todos os meninos com menos de dois anos em Belém e em seus arredores, sendo uma estimativa razoável algo em torno de 10 a 30 crianças de até dois anos Esse episódio, conhecido como a “matança dos inocentes”, marca a tentativa de um regime autoritário de suprimir o novo, o possível, o que escapa ao controle de sua lógica de dominação. Herodes, figura paranoica e cruel, age preventivamente contra o risco de transformação, assassinando a esperança em seu berço.

Dois mil anos depois, a história parece repetir-se de maneira trágica e inadmissível. Em plena Faixa de Gaza, território que compreende parte da Palestina histórica — onde nasceu Jesus de Nazaré —, mais de 14 mil crianças palestinas foram mortas (https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/quase-14-mil-criancas-morreram-em-gaza-desde-o-inicio-da-guerra-com-israel-diz-unicef/ ) em bombardeios, ações militares e cercos impostos ao longo de meses de conflito. Essas mortes não são acidentais nem inevitáveis: são resultado direto de decisões políticas, militares e ideológicas que transformaram crianças em alvos colaterais de uma lógica de guerra que despreza o valor sagrado da vida. Tal como Herodes, os poderes contemporâneos agem não apenas para conter o “inimigo”, mas para controlar os corpos, os afetos e os futuros possíveis que nascem dos filhos da Palestina.


Seja Palestina, seja Salvador, seja Palestino, seja Soteropolitano, nesse contexto, pensar que Jesus nasceu em Belém da Judeia — hoje dentro do território palestino — amplia o escândalo ético e espiritual diante do silêncio ou da cumplicidade com os massacres contemporâneos. Se a “cidade do Salvador” é Salvador, na Bahia, onde se vive uma fé cristã profundamente enraizada no povo e na cultura, é preciso também reconhecer a Palestina como “a terra do Salvador”, onde a encarnação da esperança se deu pela primeira vez. E diante disso, não se pode professar o Cristo sem denunciar os novos Herodes que matam com drones e tanques, sem sequer se inquietarem com os gritos abafados dos inocentes.


A história, portanto, clama por uma reinterpretação radical da fé e da humanidade. Assim como Herodes tentou impedir a irrupção do novo assassinando crianças, o poder de hoje tenta silenciar e silenciou o grito de 14 mil crianças, que clamavam por espaço de dignidade, vida e futuro. Ao relembrar a matança dos inocentes na bíblia, torna-se necessário erguer a voz contra a matança dos inocentes atuais. “Herodes” continua aí mandando matar crianças inocentes. A memória é resistência, e a fé, se não for encarnada na defesa dos frágeis, é apenas retórica vazia. Como afirma o poeta, teólogo e Pastor Rubem Alves: “Toda criança é um ensaio para um novo mundo. Quem mata uma criança, mata o amanhã.” Assim, que sejamos todos nós crianças Soteropolitanas vivas e saudáveis!


*Doutor em Teologia

 

IMAGEM: Jornal do PUC-SP / colagem

6 commentaires

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Milena
há 4 dias
Noté 5 étoiles sur 5.

Texto com poesia e crítica social no meio, maravilhoso. É como se dissesse: fé e resistência moram em muitos lugares, e Salvador também é território de esperança.

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Raquel De Jesus
11 juil.
Noté 5 étoiles sur 5.

Herodes ficou com medo do nascimento de Jesus e mandou matar todo mundo com menos de dois anos em Belém, loucura. Nós vemos que essa história triste ainda se repete, em Gaza, na Palestina, onde Jesus nasceu, mais de 14 mil crianças já morreram por causa de guerras e conflitos, é triste demais. Precisamos pensar nisso. Valorizar a vida das crianças e não deixar que a história se repita.

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jivia monteiro passos
23 mai
Noté 5 étoiles sur 5.

Ao comparar a "matança dos inocentes" de Herodes com a violência contra crianças palestinas, ilustra como a história se repete em tragédias modernas. Ao explorar a etimologia de Salvador e sua relação com a figura de Jesus, o autor denuncia a hipocrisia de uma fé que não se posiciona contra injustiças. Parabéns belo texto

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Bruna José Borges do Amaral
13 mai
Noté 5 étoiles sur 5.

O texto nos traz para uma reflexão sobre um cenário que, à primeira vista, parece distante e mitológico, mas, quando trabalhado, revela-se mais atual do que os próprios debates acerca da guerra. Seria uma guerra onde inocentes gritam, mas sequer existe paridade entre os oprimidos para que possa ser nomeada dessa forma. O texto deixa claro que o que se enfrenta hoje é o extermínio de uma camada específica da sociedade. Assim como o rei Herodes decretou a morte dos inocentes, hoje esse decreto é assinado com caneta em grandes salas, selando destinos de forma fria e calculada.

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Rebeca da Paz Cavalcanti
23 avr.
Noté 5 étoiles sur 5.

O texto traça um paralelo potente entre o massacre bíblico dos inocentes e a tragédia contemporânea em Gaza, denunciando as repetições históricas da violência contra crianças. A partir da geografia, da etimologia e da teologia, constrói-se uma crítica ética e espiritual que convoca à ação. Uma fé viva não pode ignorar o sofrimento atual — toda criança é promessa de futuro, e silenciar diante disso é negar o próprio Cristo.

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