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REBECA ANDRADE: NASCE UMA ESTRELA, por uma idolatria feminina


Rebeca Andrade é fruto de uma geração em que a ginastica artística, outrora ginastica olímpica, se tornou próxima dos brasileiros a partir da geração de Daiane dos Santos. Quem não se identificou com o carisma e as habilidades artísticas e acrobáticas de uma mulher preta periférica e brasileira, no exercício de solo?  Em Atenas 2004, Daiane encantou o Brasil ao apresentar o “brasileirinho” no maior evento poliesportivo do mundo, em uma época em que a ginastica era ainda mais elitista e racista.


De lá pra cá, 20 anos depois, muita coisa mudou e hoje assistimos à Simone Biles e Rebeca Andrade, para citar os dois fenômenos da ginastica, em Paris 2024. O caminho da ancestral brasileira se reflete neste lugar do topo da história. Neste pódio de ginastas, pudemos admirar três mulheres pretas o colorindo. Um pódio do futuro, que preto-domina. No topo dele, uma mulher brasileira, afro-latina, Rebeca Andrade.  Daiane não medalhou em seu auge da carreira, mas abriu muitos caminhos, por isso é impossível negar que seu legado é de Ouro.


Nas olimpíadas de Tokyo 2020, que ocorreu em 2021 por conta da pandemia, escrevi sobre a desistência de Biles em algumas categorias por questões de saúde mental, enaltecendo e humanizando este fenômeno do esporte. Dali em diante nutri uma admiração imensa por Simone Biles. Ressalto também esta revolução de psicologia e esporte através de Rebeca, principalmente por suas falas que testemunham a importância da terapia para sua performance, inclusive Rebeca Andrade começou a cursar psicologia. Então, já podemos dizer que estas duas estão fazendo uma revolução também neste sentido de autocuidado psíquico no esporte?


Naquele ano de 2021, Rebeca Andrade se destacou, e lembro de ter chorado de emoção com sua primeira medalha de ouro no salto. Ela também conquistou mais 1 medalha de prata no individual geral, tão emocionantes o quanto.  Desde lá comecei a seguir Rebeca e fiquei ainda mais feliz por ela ser atleta do Clube do meu coração, o Flamengo. Naquele momento, muito se falou de Rebeca, mas ainda existiu um descredito da sua medalha porque Biles não havia participado da prova em que a brasileira levou o Ouro. No entanto, no último mundial de ginastica, em 2023, Rebeca foi bi-campeã no salto e ganhou de Biles,  já desequilibrando o argumento de que ela só foi a melhor na Olimpíada anterior porque não tinha uma competidora a altura.


Acompanhei todas as categorias da ginastica feminina na Olimpíada de Paris, me emocionei com o bronze das meninas da Seleção Brasileira de Ginastica, porque desde criança vejo que este é um sonho brasileiro. Em mim ficou a nostalgia de Daiane, daquele gostinho de que poderia ter sido aquela geração. Este bronze, medalhe inédita, teve gosto de ouro para uma categoria olímpica que tanto batalhou por isso nas últimas edições, e porque vem banhando o gênero e o adjetivo de Brasil, o de mulheres guerreiras.


Foto por:  Naomi Baker/Getty Images, 2024 <https://olympics.com/pt/noticias/brasil-inedito-bronze-equipes-ginastica-artistica-jogos-olimpicos> Pódio olímpico do bronze, da esquerda para a direita: Rebeca Andrade, Jade Barbosa, Lorrane, Flávia Saraiva (Flavinha), Júlia Soares.


Poderia citar aqui desde a saga de Jade Barbosa em permanecer no esporte, principalmente depois de serias contusões ao longo de sua vida. Ela foi a mãe, a líder e a estilista deste time. A resiliência de Lorrane, que perdeu a irmã mais nova poucos meses antes das olimpíadas. A garra de Flavinha, quem tombou feio minutos antes da prova de equipes e voltou como uma onça. A genialidade de Júlia Soares que com 15 anos de idade criou um movimento de entrada na trave, competiu esta sua primeira Olimpíada aos 18. E claro o talento, a perseverança, o carisma e a simplicidade de Rebeca Andrade, que foi a única ginasta no mundo que conseguiu pegar Biles na pontuação, tendo poucos décimos de diferença, até conseguir de fato ganhar dela no solo. Um feito histórico.


Aqui, estou longe de criar esta rivalidade feminina, entre duas mulheres pretas. É perceptível o carinho e a admiração que Biles e Rebeca nutrem mutualmente. A forma como se portam nas entrevistas e comentam com admiração uma sobre a outra. Inclusive, queria citar até o olhar de Biles, no pódio, para Rebeca (imagem abaixo), que interpreto como uma mirada de orgulho para a amiga que chegou lá.  A impressão que dá ao ver essas duas, principalmente a reação de Biles sobre Rebeca, é que agora a estadunidense, o Pelé da ginastica, não carrega mais o peso de ser uma estrela solitária, Maradona chegou. Porém, a diferença é que não há uma verdadeira rixa entre as duas.



Foto: captura de tela do momento em que Biles olha para Rebeca com admiração. Paris, 2024.


E nossa estrela brasileira é uma mulher preta, advinda de periferia, beneficiaria do bolsa atleta, e que lutou muito para chegar no pódio e com muito, mais muito mesmo, menos recursos e mídia do que os milionários jogadores de futebol. Sua história de vida se assemelha a de milhares de atletas brasileiros, que chegam ao topo através de muito suor e luta.


Alguns atletas não possuem material necessário para a prática esportiva, não tem local adequado para treinar, não conseguem custear viagens para competir e ainda precisam contribuir com suas famílias. Rebeca é uma das poucas que conseguiu estabilidade como atleta, mas ainda assim, é um reflexo do quanto o esporte é deixado de lado no nosso país mesmo tendo um potencial de revolução. Não podemos esquecer do corte do Bolsa Atleta em governos que não priorizaram essa categoria.


Porém, mesmo com todos esses atritos de âmbito social e de descaso com a categoria esportiva. Rebeca vai lá e entrega tudo, entrega o seu melhor, tendo muito orgulho de representar o seu país, a nação brasileira. E é inacreditável pensar nos feitos que Rebeca ainda pode fazer. Se com 25 anos de idade ela já passou Biles, imagina daqui a 4 anos? Então, o que falta para chamarmos Rebeca Andrade de ídola, colocá-la na prateleira dos deuses do esporte brasileiro?


O único argumento que alguém poderia ter é que ela é mulher. Afinal agora não me lembro de um mulher que tenha chegado ao local de idolatria no mesmo patamar que atletas cis do gênero masculino. Não podemos esquecer que no dia 05 de agosto de 2024, Rebeca Andrade, foi reverenciada no topo do pódio por duas atletas estadunidenses, dentre elas a medalha de prata, Simone Biles, num ato de admiração e irmandade que se pôs no alto desse pódio ancestral.


Volto a me perguntar, o que falta, então, para colocarmos Rebeca Andrade na prateleira de Ayrton Senna e Pelé? Afinal, Rebeca tem 6 medalhas Olímpicas, dentre elas, 2 ouros. E se tornou a maior medalhista olímpica brasileira de todas as Olimpiadas até Paris 2024. Sem contar as outras competições como o Mundial. Um fenômeno do esporte.  Ela também passou a maior atleta da ginastica de sua geração, Biles. Além disso, entrega carisma, simpatia e admiração, sendo parabenizada por grandes personalidades mundiais e se posicionando com inteligência e graciosidade.


A constatação, a partir dos fatos, é a de que falta para nós brasileiros entendermos que não existe só futebol, não existe só Copa do Mundo e os meninos mimados da mídia. Inclusive, esses jogos olímpicos serviram para mostrar que o brasileiro gosta de assistir esportes quando tem Brasil, e gosta de praticar esportes, o problema ― como quase tudo neste país― é a equidade de acesso.


O que falta para nós é vergonha na cara e o entendimento de que os nossos ídolos vêm de corpos que carregam esse país nas costas. Os corpos das mulheres. E principalmente os das mulheres pretas. Tudo fica ainda mais emocionante quando vemos que os corpos que representam o Brasil têm a cara do Brasil. Corpos que merecem oportunidades de chegar ao topo. Sem discurso meritocrático.


Sendo assim, bem-vinda ao topo, Rebeca. Seja bem-vinda neste rol de imortais, neste Olimpo de Ídolos. Diva. Deusa. Divindade. Rebeca Andrade tem Aura. A atmosfera conspira para que seu brilho reluza. Rebeca Andrade já é muito e será ainda mais. Depois de crescer assistindo a ginastica e torcendo pelo meu país, agradeço por Rebeca existir e por ser Brasil neste momento histórico em que as identidades necessitam exaltação e que mais Rebecas precisam ser descobertas nas margens e em todos os cantos, inclusive no topo do pódio olímpico.

 

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