
Uma cena do cotidiano. Uma jovem mulher entra em um elevador dentro do prédio comercial na qual trabalha como nutricionista. Nele está um homem de meia idade de boa aparência e silencioso. Ela chega ao local de destino e ao sair, sente algo tocar suas nádegas. São as mãos do homem tocando seu corpo. Ela se vira indignada e ele, desesperado, aperta o botão para fechar a porta do elevador e olha brevemente para a câmera. A porta abre e ele sai correndo pela garagem do prédio, entra em seu carro branco de alto valor e foge em disparada.
Tudo foi amplamente registrado pelas câmeras do local, o homem foi denunciado pela vítima, perdeu seu emprego e responde ao processo em liberdade, sob a acusação de importunação sexual. Um ato de segundos pode ter destruído a carreira de empresário desse homem que teve o rosto estampado nos principais portais de notícias do país e foi completamente condenado pelas discussões nas redes sociais. Não quero falar da minha indignação pelo ato obsceno e machista deste homem infeliz. Eu quero me ater ao ato. Aquela sensação que tomou conta dele nos segundos que viu o corpo de uma mulher desconhecida e escolheu tocá-lo sem o consentimento dela.
Anos antecederam aqueles segundos entre a mão do homem e um corpo feminino alheio. Foi a infância dele, fazendo diferenciações sobre os meninos e as meninas, colocando-as em espaço de fragilidade, não por incapacidade própria, mas como objeto de manipulação disponível, impossibilitado de saber se defender. Foi sua adolescência, acessando filmes pornográficos onde uma nádega é apenas um detalhe e deixa de fazer parte de um ser inteiro e pensante. Foi a vida de jovem adulto, com pequenos desafios entre amigos sobre quem é mais ousado para experimentar o que é proibido ou abusar de uma mulher bêbada na balada. O que guiou esse homem a achar uma vontade que ultrapassou o seu próprio senso de autoproteção, mecanismo de sobrevivência básico do ser humano, foi uma linha do tempo alicerçada no mais puro ódio e desprezo ao feminino, a misoginia.
Existem termos que simplesmente falamos sem ao menos nos dedicar a entender o significado deles. No ano de 2020, a palavra da vez foi a tal sororidade, comentada por uma participante do reality show Big Brother Brasil. O Google apresentou um aumento significativo de pesquisas sobre o assunto. Na outra ponta da ideia de sororidade, temos a misoginia, uma palavra de escrita complicada e que, por si só não consegue, nos dar uma pista sequer do que se trata. No bom português, misoginia seria a aversão e ódio às mulheres.
No ano de 2023, essa pauta despontou quando observamos a presença dos grupos de homens redpill e seu explícito ódio às mulheres. A situação movimentou a internet de maneira tão intensa que houve até campanha para a criminalização da misoginia no Brasil. Nesta época, a psicóloga e pesquisadora Valeska Zanello se juntou a esse movimento e alertou:
“A misoginia é tão entranhada na nossa cultura que ela é tida como ‘aceitável’, passível de ser relevada. Ela está presente na esfera pública e privada e ocorre desde ‘piadas’ nada engraçadas (sexismo recreativo, parafraseando Adilson Moreira) à misoginia política e nos ambientes de trabalho! Além de ser extremamente comum na internet!!! Passou da hora de a misoginia ser CRIMINALIZADA, assim como o racismo, a homofobia e a transfobia. Por que será que isso até hoje não aconteceu????”.
Mas, você sabia que, anos antes, a feminista e escritora americana Andrea Dworkin, baseado em seus estudos, criou as regras da misoginia? Seu trabalho é voltado a argumentar como os homens posicionam seu ódio sobre as mulheres, enxergando-as como objetos de controle e opressão. Conheça as nove regras:
Primeira regra da misoginia:
Mulheres são responsáveis pelo que os homens fazem.
Segunda regra da misoginia:
Mulheres dizerem “não” para homens é um crime de ódio.
Terceira regra da misoginia:
Mulheres que falam por si mesmas são exclusionárias e egoístas.
Quarta regra da misoginia:
As opiniões femininas são violência contra os homens, mas a violência dos homens contra as mulheres é justificada.
Quinta regra da misoginia:
Mulheres e Feminismo devem servir aos homens, ou são inúteis.
Sexta regra da misoginia:
Mulheres que saem por aí sendo mulheres na frente dos homens, menstruando e amamentando, devem ser punidas.
Sétima regra da misoginia:
Mulheres devem ser gratas aos homens por tudo.
Oitava regra da misoginia:
Homens são o que quer que os homens queiram ser. Mulheres são o que quer que os homens digam que elas são.
Nona regra da misoginia:
Homens sempre sabem as “verdadeiras razões” para tudo que as mulheres fazem ou falam.
Com o que foi delimitado pela escritora, eu consigo acessar o trajeto cultural e social que atravessou as barreiras de humanidade daquele homem no elevador ao observar um corpo feminino à sua frente. Para ele, aquela mulher deve servi-lo (quinta regra) e, por isso, partes do corpo dela poderiam ser tocadas sem autorização, afinal, ele é um homem que faz o que quer, enquanto ela deve ser o que ele dita que ela seja (oitava regra). A posição dela, na visão do empresário, é que ela não deve dizer “não” para a vontade dele (segunda regra) e se, por acaso, ela se sentir violentada pelo toque dele, ele pode adequadamente justificar a roupa que ela usava ou maneira como se posicionava dentro daquele elevador (quarta regra).
Esse texto é escrito com o propósito de você olhar cada notícia alarmante sobre um ato machista como uma linha de chegada de uma corrida que percorre a vida inteira de um sujeito que foi submetido a discursos, comportamentos e ideias danosas sobre a mulher e sua presença nesse mundo. A misoginia está em cada uma dessas etapas, alimentando a coragem, a voracidade e a impetuosidade que logo estará ao alcance de um corpo feminino. Para desmantelar essa terrível linha é preciso uma educação feminista libertadora, mais espaço para as vozes femininas e punição justa e severa!
Fontes:
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Um texto impactante que precisa ser amplamente divulgado e discutido.
Esse episódio é apenas um de tantos que acontecem sem alcance midiático. O cara simplesmente num toque invasivo,acabou com a vida dele. Texto explica bem como um cara consegue virar notícia realizando um gesto desse.
Excelente texto!!!