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TEATRO DE NÓS MESMOS: A CULTURA DA PERFORMATIVIDADE






Neste ensaio, com co-autoria de Caio Fadul [1], nos propomos refletir acerca da cultura da performatividade a partir das heranças culturais que sutil ou escancaradamente controlam corpos e moldam comportamentos.


Existe algo que não fomos ensinados a performar? Existe algo que, mesmo remotamente, não seja reproduzido de forma automática no cotidiano?


Imaginemos o seguinte: alguém pinta o cabelo de laranja, usa muitos piercings, não possui aparelhos eletrônicos, escuta bandas indie desconhecidas e tem uma alimentação esotérica regada a brotos de feijão verde. Essa pessoa, certamente, se crê enquanto autêntica, progressista e subversiva às normativas culturais.


Entretanto, mesmo em casos em que códigos culturais não convencionais são utilizados na sociedade, há de se ter aprendido que eles não são convencionais e, oportunamente, ter aderido a novos códigos de mudanças estruturais (seja na vestimenta, nos acessórios, na arte ou na alimentação). Mesmo a figura que se crê a mais autêntica do mundo, até para negar exigências culturais performáticas, precisa performar.


Será que desejamos o que desejamos? Será que comemos ao meio-dia por de fato sentirmos fome? Será que vestimos calças sociais para trabalhar por de fato acreditar que elas são as mais adequadas? Quem nos disse que o cardápio do café da manhã é um e o do almoço é outro? Ora, em uma alimentação balanceada e com os mesmos nutrientes, pouco importaria o que se come em determinado horário.


Por que seguimos as horas do calendário gregoriano e acreditamos que tudo precisa ser dicotomizado entre “certo” e “errado” numa tentativa frustrante e pouco chamativa de se provar o que é ser qualquer coisa “de verdade”?

Ser honesto de verdade. Ser bom de verdade. Ser religioso de verdade. Ser homem de verdade. Ser mulher de verdade. Ser negro de verdade. Ser pessoa não binária de verdade. Ser de verdade. Enquanto tentamos ser “de verdade”, existem códigos milenares que já nos ditam sem antes mesmo termos a chance de percebê-los, questioná-los e reavaliá-los, mesmo que acreditemos estarmos os escolhendo.

Justamente por isso que a cultura é dinâmica e precisa de tanto tempo para ser percebida uma mudança significativa: é preciso de uma contribuição geracional expressiva de gente que reivindique os lugares dados como ‘’verdadeiros’’, considerando a lente cultural hegemônica.


As palavras “organicidade” e “desejo” chamaram a atenção nesses últimos tempos. O gozo da contemporaneidade é alcançar a liberdade, simbolizando-a ao seu próprio modo.


Por isso, talvez, vivamos em um teatro de nós mesmos: performamos enriquecidos de subjetividade e símbolos sem descortinar a luz amarela do palco dizendo onde devemos ficar para comunicar a nossa fala.


É curioso, por exemplo, como as queixas clínicas dentro de um setting terapêutico são bem parecidas, mesmo que suas demandas sejam distintamente simbolizadas pelos sujeitos. Na maioria das vezes, o que muda não é a queixa, mas a forma como o Outro a conduz em sua história de vida.


A forma como o Outro dá sentido e constrói um caminho de elaboração carregado de símbolos próprios da sua trajetória é o que faz, por exemplo, não ser possível dizer que exista fórmula para ser feliz ou triste neste mundo. Entretanto, a maioria dos símbolos que trazemos, também são estruturados em redes culturais sistemáticas.


A gente sofre com o amor materno, talvez, porque alguém tenha nos dito como deveria ser o amor materno. Nos angustiamos com a ausência de amor romântico, talvez, porque alguém tenha nos dito que é preciso ser amado romanticamente [2].


Sofremos com a morte de uma pessoa querida, talvez, porque nos disseram que a morte é necessariamente dolorosa para quem fica e enlutece. Isso não significa que essas coisas não se apoiam nos mais complexos símbolos de forma simultânea (subjetivos, culturais, afetivos, enfim), e evidentemente esse texto não se trata de mecanizar nenhuma relação social a colocando de forma determinista e maniqueísta sob o olhar quase-antropológico. Mas precisamos falar sobre performatividade para que, talvez, possamos nos desobrigar um pouco das atuações e exigências [3].


Nos disseram que existe uma forma certa de homens e mulheres sentarem, que precisamos transar de forma automática penetrando ou sendo penetrado, que precisamos sair de casa aos 18 e casar aos 25, que o tempo ideal para gestar uma criança é antes dos 30, que homens mijam em pé e mulheres mijam sentadas, que arrotar/peidar/tirar meleca é nojento, que precisamos amar e desejar um corpo dimórfico ao nosso, que para a gente ser “de verdade” precisa antes ser “de mentira” atuando repetidas vezes num papel que nós não escolhemos.


É um texto bem filosófico. Sabemos disso. A intenção aqui não é ressignificar a cultura num modo prático e fazer todo mundo sair por aí agindo subversivamente às coisas inventadas (porque foram inventadas, ninguém aguenta mais o determinismo biológico e a balela do “é assim porque é natural), mas talvez seja interessante pensar um pouco mais nessas invenções e sair do automático.


Se é para atuar, que façamos com gosto e com um pouco mais de consciência (política, ambiental, afetiva, sexual, de gênero, partidária, diplomática, alimentar, entre outras).


Mas talvez seja interessante dar às pessoas que forem ler esse texto, a possibilidade de analisarem seus teatros, refletirem sobre suas performances e alugarem um belo triplex na cabeça.


_______________



Notas:

[1] Caio Fadul é psicólogo social e psicanalista, poeta, amante de todo tipo de arte, pesquisador de gênero e diversidade, além de meu companheiro de luta e de vida.

[2] A respeito da temática do amor romântico, veja o texto ‘’A não-monogamia é ética?’’ em https://www.soteroprosa.com/single-post/a-n%C3%A3o-monogamia-%C3%A9-%C3%A9tica

[3] Ressaltamos que compreendemos a leitura cultural dos símbolos citados no texto nas mais diferentes sociedades, mesmo que tenhamos trazido exemplos ocidentalizados. Também reiteramos que não há nada de errado em performar as coisas citadas, a intenção é apenas refletirmos sobre elas.



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4 Comments

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Caio Fadul
Caio Fadul
Oct 28, 2023
Rated 5 out of 5 stars.

É sempre bom dividir espaços de produção com você. Excelente parceria! :)

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Gratidão!

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Oct 26, 2023

Ótimo texto,Kelly. Todo o artigo é permeado por ontologias.

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Obrigada pelo comentário, Carlos

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