Morre Pelé e na minha bolha de mulheres a discussão que se puxa é relembrar seus comportamentos machistas ao longo da vida. Porém, o atleta também conseguiu ser brilhante, talentoso e preocupado com causas importantes. Esse tipo de contradição é mais comum do que a gente imagina, por isso, quero saber:
O que a gente faz com homens brilhantes e machistas?
Jogadas inéditas e magistrais, talento absurdo para uma pessoa de lar simples e pobre, o futebolista Pelé deu orgulho para o povo brasileiro, que encontrou destaque mundial em um esporte que nem nasceu aqui. Mesmo sendo um país rico em diversos aspectos, o Brasil sempre foi menosprezado pelas grandes nações ocidentais, sendo tratado como mais um país inferior da América Latina. Com o futebol, o Brasil era rei através de Pelé que, como fenômeno global, conseguiu ir além dos campos ao participar de filmes, compor canções e até virar personagem de quadrinhos. Também se destacou no ativismo social, como diz um artigo da própria Organização das Nações Unidas (ONU) em homenagem ao jogador :
“(...) grande defensor de causas sociais, desde o acesso à água potável para todos passando pelo meio ambiente e o direito das crianças em algumas parcerias com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e com governos nacionais.”
Mas, os bons feitos do atleta não conseguiram ofuscar, especialmente nos últimos anos, os escândalos relacionados ao seu comportamento machista. Xuxa, apresentadora que ele namorou por muitos anos, deu a letra sobre como era o relacionamento com o rei Pelé. Primeiro de tudo, ela tinha apenas 17 anos quando começou a relação com o jogador - que tinha 41! Para piorar, a própria artista revelou, em entrevista no canal do Youtube de Matheus Mazzafera, como o jogador foi infiel a ela ao longo dos seis anos que permaneceram juntos:
"Na minha primeira relação, que foi com o Pelé, eu era traída de cabo a rabo. Muito, mas muito. A ponto de olhar pra ele e uma vez ele estar com batom na boca vermelho e eu não estava de batom. Pra ele era normal."
Quando investigamos mais sua vida pessoal, o comportamento machista se expande também no seu papel como pai. Em 1964 ele teve uma filha, Sandra Nascimento, resultado da relação dele com sua empregada, Anízia Machado. Pelé exigiu um exame de DNA que comprovou geneticamente que Sandra era sua filha. Além de tentar recorrer, o rei do futebol não fez questão de criar nenhum laço afetivo com ela e nunca lhe deu suporte financeiro mesmo quando, aos 42 anos de idade, ela morreu de um câncer de mama. Pelé não visitou Sandra quando ela estava internada, nem compareceu ao seu velório, onde enviou uma coroa de flores que dizia: “À família Arantes Felinto nossas condolências, de todos os funcionários das empresas Pelé”. Ou seja, nem as condolências foram oferecidas pelo próprio pai, mas pela sua empresa.
Nesse ponto, imagino que você esteja indignada/o com os detalhes da vida privada dessa figura famosa, mas, ainda quero ampliar a sua percepção, avisando que isso é mais comum do que imaginamos. Abaixo uma listinha simples de personalidades com comportamentos machistas:
Brad Pitt é acusado pela ex-mulher Angelina Jolie de agressões a ela e aos filhos.
Bill Clinton, na época presidente dos EUA, se envolveu com uma estagiária de 22 anos, mesmo sendo casado.
Chris Brown e seu histórico de abuso e violência contra as suas ex-namoradas, incluindo a famosa cantora Rihanna.
Dado Dolabella que mesmo após sérias acusações de agressões de relacionamentos anteriores, conseguiu ser vencedor de um reality show na época.
Ezra Miller, famoso por interpretar The Flash, está relacionado a vários escândalos, envolvendo detenções e acusações de distúrbios, assédio e agressão.
Acho que agora você está esperando que eu dê a solução para esse paradoxo. O que é mais viável? Renegar os feitos desses homens diante de seus comportamentos torpes? Separar o joio do trigo e saber validar seus talentos, apesar do machismo gritante? Normalizar a ideia que mesmo as pessoas que mais admiramos podem ter atitudes desprezíveis? Confesso que eu mesma me embaralho nessas questões, especialmente quando observo isso em homens que admiro na mídia e nas artes de um forma geral. Por isso, infelizmente não vou te dar uma resposta exata sobre o que fazer diante de figuras masculinas tão talentosas e cheias de comportamentos machistas, porém, consigo atentar três pontos importantes.
Primeiro, não podemos negar a indignação diante dos episódios de machismo que temos conhecimento sobre uma personalidade que admiramos. No mínimo, precisamos admitir o erro da pessoa e ainda cobrar a justiça, caso a situação demande isso. Se a atitude machista da situação for um gatilho para você, compreendo perfeitamente o desprezo completo que possa ser assumido pelo talentoso homem em questão. Pelé, por exemplo, ao abandonar sua filha, me lembra completamente do abandono de meu pai a todos os seus filhos. Por isso, tenho enorme dificuldade em admirar o “Rei do Futebol”.
Segundo, ao celebrar as qualidades e sucessos desse homem, é preciso saber que ele chegou àquele lugar de importância também por conta da impunidade, que o livrou de ser responsabilizado por seus comportamentos danosos. Ou seja, o machismo foi um dos impulsionadores da sua “vitória” pessoal. É preciso ter consciência que o privilégio masculino orquestrou um papel vital na “jornada do herói”, afinal, pense comigo, se Pelé fosse responsabilizado pelas traições conjugais e o abandono parental, ele provavelmente perderia sua credibilidade para jogar em certos times e até na própria seleção brasileira! Sem essas oportunidades, seu talento não seria tão visto e ovacionado e ele acabaria como mais um bom jogador com uma péssima fama.
O último ponto que pode ser tirado dessas situações é que o machismo não tem cara de gente má. Pessoas que lutam contra causas importantes, que são caridosas e bondosas reproduzem esse sistema opressor continuamente, por isso, a importância de discutir o assunto e incluir os “bons homens” nisso. O pai amoroso, o irmão protetor, o tio engraçado e o esposo carinhoso podem adotar atitudes machistas que afetam a qualidade de vida e a saúde mental de várias mulheres. Por isso, é vital que eles ouçam os incômodos delas e saibam que, mesmo ao apontar essa postura, elas continuem admirando suas qualidades.
Por fim, considero que a morte de Pelé, além de ser um momento para lembrar seu legado brilhante como um talentoso jogador e atleta e seus feitos no campo social, também permite que discutamos as falácias cometidas na sua vida privada e que reproduzem comportamentos que oprimem e invalidam as mulheres, o velho e mau machismo de todo dia.
FONTE:
Ótimo ensaio, Karla. E até pode ser reproduzido em outros terrenos, muito além do futebol. Seja na ciência, no cinema, na mídia, como a gente lida quando os nossos grandes ídolos, figuras que até transformaram o mundo de alguma maneira, apresentam algum tipo de deslize ético? Por exemplo, Heidegger, um dos maiores nomes da filosofia do século XX, apoiou o nazismo. Sartre, outro grande filósofo, apoiou o stalinismo. Como você mesma disse, é complexo. Até mesmo no cotidiano, com parentes e amigos, a coisa é tensa. Imagine pessoas que a gente admirava, mas ao mesmo tempo fizeram algo de estranho ou contraditório. Como a identidade daquela pessoa fica na nossa cabeça diante de certas contradições? E pior... mesmo sem ter…
Ótimo texto,Carla. É inegável que esse abandono parental manchou demais sua biografia. Porém,houve a reverência e homenagens ao mago inigualável dos gramados. A situação é tão complexa que o Edson Arantes do Nascimento se referia a Pelé como se fosse um mito que ele incorporou. Portanto,as homenagens são a um personagem e o homem fora dele é o machista nosso de cada