Todo dia bilhões de pessoas ao redor do globo se engajam em debates, discussões e conflitos, sejam aqueles mais informais, a exemplo de mesas de bar ou comentários no Twitter, ou até mesmo aqueles sofisticados, como congressos e eventos em geral. Apesar de muitos lá fora defenderem a “crítica” como algo sempre bom, desde que alguém se oponha a um conjunto de fatos estabelecidos, é preciso ter muito cuidado. Dentro dessa palavra mágica (crítica) existe uma variedade de estratégias retóricas, muitas delas nem um pouco saudáveis e até incompatíveis com a própria democracia.
Logo abaixo existem alguns exemplos dessas estratégias retóricas problemáticas, nada mais do que um aperitivo de um campo complexo e muito perigoso. Essas estratégias podem até parecer inteligentes à primeira vista, mas são apenas cortinas de fumaça que desviam a atenção do público, quase como um show de mágica com consequências desastrosas. É preciso deixar claro, antes de nosso mergulho mais profundo, o quanto esses "desvios retóricos" não são simples problemas de caráter, muito menos falta de inteligência. Eles são mecanismos de defesa em momentos de crise, podendo afetar qualquer um, a qualquer hora, inclusive eu, o autor desse ensaio. Embora devam ser evitados, esses desvios são mais comuns do que parece, principalmente quando ferramentas retóricas mais "saudáveis" estão indisponíveis.
Estratégia do Espantalho: Ao invés de responder ao que foi perguntado, o sujeito ataca um outro tipo de pergunta que ele mesmo produziu em sua própria cabeça, distorcendo o questionamento original:
Joana: Cerveja é um produto que não deveria ser divulgado em propagandas na TV aberta, já que crianças e adolescentes acessam esse conteúdo o tempo inteiro
Sérgio: Mas os humanos sempre tomaram cerveja. Não se deve banir o consumo de cerveja de forma nenhuma
Observe que Sérgio não responde ao argumento de Joana, mas a um espantalho criado pelo próprio Sérgio. Em nenhum instante Joana afirmou o banimento do consumo de cerveja. Não era esse seu ponto.
Estratégia Ad hominem: O objetivo aqui é atacar o caráter do oponente, ao invés de responder ao argumento levantado. Essa estratégia é uma das mais populares em cursos de Humanas, além de fazer parte de debates políticos, sejam eles de esquerda ou direita. É uma estratégia muito eficiente, com baixo investimento argumentativo, mas com efeitos devastadores ao adversário.
Joana: Um dos mais recentes livros de Bourdieu, a "dominação masculina", publicada quatro anos antes da sua morte, resgata uma ótima síntese das compreensões fenomenológicas e estruturais, realçando mais ainda os limites de um mundo falogocêntrico.
Sérgio: Bourdieu é só um homem branco, europeu e mimado. Eu também soube que ele era homofóbico e pervertido. Vivia batendo na mulher
Observe que as acusações a Bourdieu podem até ser verdadeiras, assim como as possíveis limitações geradas pelo seu lugar de fala (homem branco e europeu), mas nada disso invalida os argumentos de Joana. Na verdade, o seu núcleo argumentativo nem sequer é considerado por seu adversário, o Sérgio.
O lugar de fala, caso queira ser uma estratégia retórica saudável, deve se apresentar apenas como um ponto de partida em um debate, jamais como ponto de chegada, revelando assim falhas argumentativas no discurso do adversário. Nesse caso, o fato de Bourdieu ser homem e europeu pode, em certas circunstâncias, interferir em seus julgamentos, como qualquer outra experiência pode também impactar o que pensamos e dizemos, mas é preciso esclarecer onde exatamente esse lugar de fala comprometeu o raciocínio, o que foi negligenciado, distorcido, etc. Da mesma forma que um ucraniano pode concluir que meu ensaio sobre o conflito na Ucrânia é problemático pelo meu não compartilhamento de sua história e vivência, mas se espera que esse mesmo ucraniano explique onde exatamente se localiza meu erro, o que deixei escapar. Caso contrário, caso o lugar de fala seja visto como ponto de chegada, usado sem maiores considerações, nem sequer uma atenção aos argumentos do adversário, ele se torna um simples desdobramento ad hominem.
Estratégia do Whataboutism: A meta, ao menos aqui, é tirar o foco do núcleo argumentativo, apontando para possíveis exceções que não foram consideradas em certo momento ou lugar, quase sempre sugerindo a hipocrisia do adversário:
Joana: Bolsonaro fez um péssimo mandato, principalmente na gestão do coronavírus
Sérgio: Mas e Lula? Quando ele cometeu os erros ninguém falou nada
Observe que a estratégia do whataboutism não necessariamente é falsa. Nesse caso, "os erros de Lula" podem ser reais, e até terem sido recepcionados pelo público e pela mídia de forma mais suave, mas isso não invalida o argumento principal (A má gestão de Bolsonaro), nem sequer o enfraquece. É apenas uma cortina de fumaça produzida quando faltam argumentos mais sólidos. PS: Tenho um ensaio aqui no soteroprosa apenas sobre Whataboutism (Clique aqui)
Estratégia do deslocamento: Os argumentos em jogo se tornam apenas pretextos de dilemas psicológicos mal resolvidos, servindo muito mais como válvulas de escape, quase uma sessão espontânea de terapia. Ao invés de criticar meu pai, por conta de um passado traumático e cheio de emoções descontroladas, eu redireciono esse ódio a uma figura específica, meu adversário, usando argumentos apenas como fachadas que encobrem, no fundo, motivações psicológicas mais cabeludas. O oponente se torna um deposito transferencial de traumas, dúvidas, ódios, além de muitos outros sentimentos que seriam completamente impossíveis de acolher em suas formas originais. Nesse caso, não são os argumentos do oponente o espalho, como descrevi logo acima, mas o próprio outro se torna um espantalho, sua própria presença é uma completa simplificação.
Estratégia da redução ao absurdo: O objetivo aqui é elevar o argumento do oponente ao extremo do absurdo. Embora pareça muito com a estratégia do espantalho, a redução ao absurdo preserva o núcleo argumentativo do oponente, mas retira consequências extremas.
Joana: Todas as pessoas tem o direito à liberdade de expressão, sendo um princípio importante em nossa democracia liberal
Sérgio: Então você defende um mundo onde todos falam o que quiser? Um mundo em que todos xingam todos, pais insultam filhos, filhos insultam mães? É isso que você quer?
Estratégia do apelo à ignorância: Aqui o interlocutor sustenta um argumento como óbvio e válido, já que o adversário não possui uma prova contrária disponível.
Joana: A TPM é uma construção social criada por uma sociedade machista.
Sérgio: Eu discordo.
Joana: Mas você conhece algum estudo que prove o contrário?
Sérgio: Não consigo pensar em nenhum agora.
Joana: Logo, eu estou certa.
Como disse no começo desse ensaio, essas estratégias são como sintomas, modalidades de corpo que podem afetar qualquer um, principalmente quando estamos em risco, quando faltam ferramentas argumentativas ou até mesmo emocionais. "Como achar uma saída, como evitar tudo isso?", pergunta você, curioso. É preciso ter cuidado, o máximo que conseguimos, afinal não é essa a nossa meta, ou seja, a construção de um campo democrático e diverso? Se essas estratégias continuam em jogo, a própria democracia permanece em risco, já que o outro é sempre considerado como um pretexto em meu tabuleiro argumentativo, um simples efeito. Como já deve ter ficado claro, isso não é justo com ele ou com você mesmo. Em um mundo de polarizações e ódios, precisamos de uma estrutura de linguagem mais adequada, mais horizontal, menos pretensiosa. Eu sei que não é fácil, eu entendo completamente a dificuldade, mas é necessário. Mais do que nunca precisamos aprender a conversar e a ouvir um tipo de outro que não sou, que não é como eu, mas tem sua própria trajetória.
Referência da Imagem:
https://youthincmag.com/up-your-debating-skills-with-these-5-helpful-tips-to-ensure-victory
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